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CAPES

Volume 10, Número 2, Abr/Jun - 2006

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O trabalho da enfermagem em unidades críticas e sua repercussão sobre a saúde dos trabalhadores

 

Nursing work in critical units and its repercussion over workers' health

 

El trabajo de la enfermería en unidades críticas y su repercusión sobre la salud de los trabajadores

 

 

Carmem Lúcia Colomé BeckI; Rosa Maria Bracini GonzalesII; Lilian Medianeira Coelho StekelIII; Joanita Cechin DonaduzziIII

IEnfermeira. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria. e-mail: carmembeck@smail.ufsm.br
IIProfessora da Universidade Federal de Santa Maria SM
IIIAluna de Graduação da Universidade Federal de Santa Maria SM

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo estabelecer relações entre o trabalho da enfermagem em unidades críticas e sua repercussão sobre a saúde dos trabalhadores. Foi realizada uma pesquisa exploratório-descritiva, do tipo qualitativa, que envolveu 46 trabalhadores de enfermagem (enfermeiros e auxiliares). Foram selecionados dois hospitais, um público e um filantrópico, sendo realizada a pesquisa nas unidades críticas de pronto-atendimento, unidade de terapia intensiva, unidade e ambulatório de hematoncologia e centro cirúrgico. Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram a entrevista semi-estruturada e a observação do trabalho nos três turnos aplicadas no período de janeiro a junho de 1999. Teve como resultado o mapeamento de diversas doenças crônicas expressas por estes trabalhadores, bem como a verbalização da dificuldade dos mesmos em se cuidarem, assumindo a responsabilidade que lhes cabe sobre sua saúde.

Palavras-chave: Enfermagem. Doenças crônicas. Unidades hospitalares.


ABSTRACT

This study had as objective to establish relations between the work of the nursing in critical units and its repercussion on the health of the workers. A exploratory-descriptive research was carried through, of the qualitative type, that involved 46 workers of nursing (nurses and assistant). Two hospitals had been selected, a public and a philanthropic, being carried through the research in the critical units of soon-attendance, unit of intensive therapy, unit and clinic of hemathoncology and surgical center. The instruments of data collection used had been the half-structuralized interview and the observation of the work in the three turns applied in the period between January and June of 1999. It had as resulted the mapping of diverse express chronic illnesses for these workers, as well as the verbalization of the difficulty of the same ones in to taking care of themselves, assuming the responsibility that fits to them on their health.

Keywords: Nursing. Management. Nursing Services.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo establecer relaciones entre el trabajo de enfermería en unidades críticas y su repercusión sobre la salud de los trabajadores. Fue realizada una investigación exploratorio-descriptiva, del tipo cualitativa, eso implicó a 46 trabajadores de enfermería (las enfermeras y ayudante). Habían sido seleccionados dos hospitales, un público y un filantrópico, siendo realizada la investigación en las unidades críticas de pronto-atención, unidad de terapia intensiva, unidad y ambulatorio de hematoncología y centro quirúrgico. Los instrumentos de colección de datos usados habían sido la entrevista semi-estructuralizada y la observación del trabajo en los tres turnos aplicadas en el período entre enero y junio de 1999. Tenía como resultado el mapeamento de las enfermedades crónicas expresas por estos trabajadores, bien como la verbalización de la dificultad de ellos a tomar cuidado de sí mismos, asumiendo la responsabilidad que cabe a ellos sobre su salud.

Palabras clave: Enfermería. Gerencia. Servicios de Enfermería.


 

 

INTRODUÇÃO

É pela ética cotidiana, pela estética em todos os momentos da vida, pela sobrevivência do espírito, além da sobrevivência do corpo, da liberdade para acrescentar mais espaço ao movimento e ao pensamento que se consolida a omnilateralidade da existência do ser humano1:175

Ao estudarmos as questões ligadas à saúde dos trabalhadores de enfermagem, surgiu o interesse em aprofundar questões ligadas às doenças crônicas que comumente acometem esses trabalhadores.

A equipe de enfermagem integra uma das parcelas de trabalhadores de saúde que estão, cotidianamente, expostos a cargas de trabalho, ou seja, exigências ou demandas psicobiológicas do processo de trabalho que geram, ao longo do tempo, desgaste das capacidades vitais do trabalhador.

O eixo norteador da reflexão deste estudo está apoiado em autores como Dejours2, a partir de seus marcos conceituais, e em Beck3, por meio de sua tese de doutorado intitulada Da banalização do sofrimento à sua re-significação ética na organização do trabalho. Este trabalho foi desenvolvido em unidades críticas (pronto-atendimento, unidade de terapia intensiva, unidade e ambulatório de hematoncologia e centro cirúrgico) e revelou a necessidade da realização de intervenções propositivas em relação aos trabalhadores destas unidades, por tratarem-se de ambientes que implicam em exigências em todos os aspectos, sejam eles físico (desgaste no atendimento), mental (estado de alerta permanente), social (carências dos pacientes) e espiritual (convívio continuado com o sofrimento, com a dor e com a morte)3.

Para construção deste trabalho, foram retomadas algumas considerações de Dejours4, 5, 6 sobre o conceito de saúde que podem auxiliar na compreensão acerca das complexas relações entre saúde e trabalho. O primeiro aspecto é que a saúde não é algo que vem do exterior, não é assunto dos demais, de uma instância ou instituição, do Estado ou dos médicos. Não é retirada a obrigação do Estado em fornecer os meios adequados de manutenção e de assistência à saúde dos cidadãos, mas é destacado que, somente o indivíduo é capaz de saber se tem saúde ou não, ou seja, apenas ele é capaz de estabelecer os limites entre o normal e o patológico, uma vez que é ele quem sofre e reconhece suas dificuldades para enfrentar as demandas que o meio lhe impõe. Portanto, quem pede atenção, quem precisa ser escutado é aquele que sabe e se sente doente.

A segunda observação diz que a saúde é uma coisa que se ganha, que se enfrenta e de que se depende. Neste sentido, é importante salientar o papel que cada indivíduo desempenha como mobilizador na manutenção da sua saúde.

A terceira observação diz que a saúde é alguma coisa que muda o tempo todo, não sendo um estado de estabilidade ou de ausência de movimento, portanto, exige dos trabalhadores uma atenção contínua.

A quarta observação lembra que a saúde é, antes de tudo, uma sucessão de compromissos com a realidade, que se assume, que se muda, que se conquista, que se perde e que se ganha. O mesmo autor faz referência a três aspectos da realidade: o primeiro deles refere-se à realidade do ambiente material, sendo que com este é necessário fazer-se compromisso; o segundo é a realidade afetiva, relacional, familiar, ou seja, toda a vida mental, psíquica e suas relações; o terceiro é a social, no qual a organização do trabalho deve ser destacada, face às suas implicações na saúde dos indivíduos. É nesta realidade que se encontram os profissionais de enfermagem, apesar dos mesmos, muitas vezes, não terem esta consciência 2.

Portanto, este estudo tem como objetivo estabelecer relações entre o trabalho da enfermagem em unidades críticas e a repercussão do mesmo sobre a saúde dos trabalhadores de enfermagem, evidenciando as doenças crônicas mais freqüentes e as formas de enfrentamento das mesmas pelo trabalhador.

 

METODOLOGIA DO TRABALHO

A amostra da pesquisa foi composta por 20 enfermeiras e 26 auxiliares de enfermagem. Optou-se por trabalhar com uma enfermeira e um auxiliar de enfermagem por turno e por unidade. Decidiu-se que enfermeiras e auxiliares de enfermagem fossem divididos em grupos, por instituição e por área, e que, a partir daí, acontecesse a seleção dos indivíduos por sorteio.

O cenário da pesquisa envolveu dois hospitais de uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul, sendo um hospital público e um filantrópico. No hospital público, participaram 25 trabalhadores (12 enfermeiras e 13 auxiliares de enfermagem), e no hospital filantrópico, 21 trabalhadores de enfermagem (8 enfermeiras e 13 auxiliares de enfermagem).

As unidades pesquisadas foram o Pronto-Atendimento (PA- 4 enfermeiras e 6 auxiliares de enfermagem), a Unidade de Terapia Intensiva de Adultos (UTI- 5 enfermeiras e 6 auxiliares de enfermagem), o Centro Cirúrgico (CC- 5 enfermeiras e 6 auxiliares de enfermagem), o Ambulatório de Hematoncologia (Amb. HO- 2 enfermeiras e 2 auxiliares de enfermagem) e a Unidade de Hematoncologia (Un. HO- 4 enfermeiras e 6 auxiliares de enfermagem).

Os instrumentos de captação dos dados da presente investigação foram compostos pela observação do trabalhador e do ambiente nos três turnos de trabalho e por uma entrevista semi-estruturada realizada com os mesmos.

A observação nada mais é que o uso dos sentidos com vistas a adquirir conhecimentos a partir da realidade, do cotidiano, sendo os fatos percebidos diretamente, sem qualquer intermediação7. Com as observações, foi possível reforçar os dados obtidos nas entrevistas realizadas com os trabalhadores de enfermagem, sendo que os registros destas observações desenvolvidas nos três turnos de trabalho foram feitos sob forma de anotações de campo8. O período de observação de campo foi de janeiro a junho de 1999, totalizando 243 horas de carga horária.

A entrevista semi-estruturada também foi escolhida como técnica de coleta de informações na pesquisa qualitativa, sendo um instrumento privilegiado de coleta, pois possibilita que a fala seja reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas, tendo a possibilidade de transmitir as representações de determinados grupos, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas9. As entrevistas semi-estruturadas foram compostas por questões abertas, que tiveram como fio condutor um roteiro previamente estabelecido que contemplasse a problemática central do estudo. Por meio da entrevista, buscou-se conhecer quais as doenças que os trabalhadores já haviam tido diagnóstico e que referiam estar associadas ao trabalho. As entrevistas foram realizadas entre o período de janeiro a junho de 1999.

As falas dos trabalhadores de enfermagem aparecem no texto com nomes fictícios, sendo que, se o trabalhador é Enfermeiro, aparece a letra E; se é Auxiliar de Enfermagem, a letra A. Seu local de trabalho é identificado pelas iniciais Am para o ambulatório, CC para o Centro Cirúrgico, PA para o Pronto-atendimento, HO para Hematoncologia e UTI para Unidade de Terapia Intensiva.

Ao realizar as entrevistas, foi entregue aos trabalhadores de enfermagem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, a qual regulamenta a Pesquisa em Seres Humanos, sendo que o projeto tramitou internamente e foi aprovado para ser implementado nas instituições que compuseram este estudo.

Na análise dos dados, em uma apresentação didática, as doenças foram divididas em quatro grupos: no primeiro, as doenças provocadas pelas exigências físicas da profissão; no segundo, as doenças desencadeadas pelo estresse; no terceiro, as doenças provocadas pelos riscos químicos e, no quarto, as doenças de origem não esclarecida.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A faixa etária dos trabalhadores de enfermagem mostrou que a maioria das enfermeiras (65%) e dos auxiliares de enfermagem (34%) tinha entre 30 e 40 anos, o que caracterizou um grupo de trabalhadores jovens, com experiências ao longo da sua vida.

Com relação ao gênero, 95% dos trabalhadores são do sexo feminino e 5% são do sexo masculino, reafirmando o fato de que a profissão é formada por mulheres, na sua grande maioria, e que as atividades de cuidar de doentes, provendo os elementos indispensáveis ao bom desenvolvimento do enfermo, sempre estiveram delegadas às mulheres10.

Com relação ao tempo de serviço na enfermagem, 50% das enfermeiras e 51% dos auxiliares de enfermagem tinham entre 1 e 10 anos, o que pode caracterizar um período significativo de exercício profissional na enfermagem.

Com relação ao tempo de serviço na unidade hospitalar, 60% das enfermeiras e 73% dos auxiliares de enfermagem têm entre 0 a 5 anos de tempo de serviço na unidade hospitalar; 30% do grupo de enfermeiras e 15% dos auxiliares têm entre 5 e 10 anos de trabalho na unidade crítica.

Estes dados demonstram que tanto as enfermeiras quanto os auxiliares de enfermagem têm tempo significativo de experiência nessas unidades em que atuam, o que os habilita a responderem às questões com base nas vivências que experimentam ao longo do tempo. Por outro lado, este fato pode favorecer a banalização do seu sofrimento e o do sofrimento do outro (paciente ou familiar), bem como da própria assistência de enfermagem, uma vez que podem ter acostumando-se com aquilo que vêem, percebem, escutam e, principalmente, sentem com relação ao seu processo de trabalho.

Com base nestes resultados, considerou-se importante relacionar as doenças referidas pelos trabalhadores e vinculadas ao trabalho na Enfermagem.

Com relação aos dados, pode-se dizer que, dos 46 trabalhadores que participaram do estudo, 17 deles (37%) referiram não apresentar nenhuma doença associada ao trabalho, e 29 (63%) informaram apresentar doenças relacionadas a ele ou agravadas pelo seu desempenho profissional, caracterizando um índice alto, considerando, especialmente, que 50% das enfermeiras e 51% dos auxiliares de enfermagem tinham entre 1 e 10 anos de serviço nesta profissão e um longo caminho a percorrer com relação ao tempo de serviço para aposentadoria.

Vinte e nove trabalhadores (63%) referiram uma ou mais doenças provocadas ou agravadas pelo exercício da enfermagem, as quais foram classificadas em quatro grupos. No primeiro grupo, estão as doenças provocadas pelas exigências físicas do trabalho de enfermagem em unidades críticas, ou seja, advindas do trabalho realizado em pé por longos períodos, da sobrecarga de peso na movimentação de pacientes no leito e no transporte dos mesmos (sobrecarga da coluna e das articulações, varizes, bursites e tendinites), o que pode ser denominado de carga mecânica.

As doenças da coluna vertebral têm fundo eminentemente psíquico e merecem especial destaque pelo que encerram de simbólico e pelo que influenciam a vida e o bem-estar das pessoas. A região lombar desempenha papel importante nas atividades básicas da vida: opor-se, manter-se ou, ao contrário, curvar-se, ceder, sujeitar-se. A impossibilidade de erguer adequadamente a coluna agride o amor-próprio da pessoa, implicando na idéia simbólica, evidentemente, de que está abandonando a dignidade humana. A postura do indivíduo pode refletir o estado do seu psiquismo, expressando o que poderíamos chamar de linguagem corporal11. Estes problemas são evidenciados na fala dos trabalhadores:

O que tu sentes com o tempo são os problemas de coluna, de varizes, que vão aparecendo devido ao ritmo de trabalho na área de enfermagem. Eu faço 13 plantões por mês, de 12 horas. (Marília, A-CC).

Noto bastante problema de coluna e as varizes que não tinha antes de trabalhar. A gente faz muita força para virar os pacientes muito pesados. A única coisa que faço, às vezes, é erguer as pernas.
(Anita, A- HO).

eu tenho problema de coluna, dor nas pernas, cansaço físico. Tu sabes que, diariamente, deves chegar em casa e erguer os pezinhos para cima, descansar... eu tento, mas nem sempre consigo ...
(Rosa, A-Am).

Estas falas evidenciam a resistência demonstrada pelos trabalhadores de enfermagem a se cuidar corretamente e a acompanhar a evolução das suas doenças com cuidado. Logo, como cuidar dos outros sem prestar atenção e buscar atender às suas necessidades?

No segundo grupo, estão as enfermidades provocadas ou desencadeadas pelo estresse proveniente do estado de alerta permanente, da sobrecarga emocional, bem como dos eventos situacionais esperados ou não, podendo ser denominados cargas psicossociais. As doenças que compõem este grupo são a hipertensão arterial sistêmica, a angina estável, a gastrite e os estados depressivos.

A depressão e a intolerância com os cônjuges e filhos foram também mencionadas por esses trabalhadores, como resultado das preocupações decorrentes do trabalho, evidenciando a estreita relação entre vida social e profissional.

Dentre os trabalhadores de unidades de terapia intensiva, as queixas mais importantes são de ordem emocional com sintomas como angústia, ansiedade, cansaço mental, irritabilidade, desânimo, depressão dentre outros. Em segundo lugar, aparecem as alterações de coluna vertebral, como a dor lombar e a diminuição da força muscular12.

Acredita-se que, nos seres humanos, a grande determinante do potencial nocivo do estresse é um estado interior de insatisfação consigo mesmo e com a vida11:50. O estresse pode provocar uma reação nos denominados órgãos de choque, como os intestinos, o estômago, as artérias e o coração e que, com a repetição das situações estressantes ao longo da vida, a pessoa poderá apresentar gastrites, úlceras, mau funcionamento do intestino, hipertensão e infarto do miocárdio11.

A relação entre os distúrbios do aparelho digestivo e sofrimento psíquico é uma das mais antigas noções de psicossomática, por várias razões: o fato de dois componentes do tubo digestivo (boca e ânus) serem importantes vias de comunicação do interior do organismo para o meio exterior; a importância da alimentação e da excreção na formação da personalidade e no psiquismo da criança nos primeiros anos de vida, e a estreita vinculação do tubo digestivo com o sistema nervoso autônomo e mecanismos hormonais de estresse11.

Os fatores emocionais, como aumento da tensão, ansiedade e hostilidade, desempenham papel significativo, se não na gênese da hipertensão arterial, certamente no seu agravamento e desencadeamento11. Isso aparece expresso na fala deste trabalhador:

Quando eu abuso, eu noto alterações, eu me estresso muito, principalmente na época que tem pacientes gravíssimos e pouco pessoal, e eu faço esforço físico porque é necessário colocar a "mão na massa", tem que virar paciente, e esta "academia gratuita" faz com que eu sinta tontura ao forcejar. (Elisa, E-UTI).

A exposição a produtos químicos classifica a rinite alérgica, e a plaquetopenia compõe o terceiro grupo. Já no quarto grupo, estão elencadas as doenças que aparecem no exercício da profissão e que não têm sua origem esclarecida. São as doenças ligadas ao funcionamento da tireóide e ao pâncreas e que, segundo os trabalhadores, foram diagnosticadas em momento de grande estresse, o que sugere uma vinculação estreita entre os aspectos emocional e físico.

Pode-se dizer que há uma clara associação entre o desencadear da doença (manifestação de doença glandular) e uma situação emocional importante. No caso específico do hipertireoidismo, as situações ameaçadoras ao eu do indivíduo e às suas defesas e que provocam angústia significativa são favorecedoras do aparecimento dessa patologia12. Esta questão aparece nas falas dos trabalhadores:

Eu já ouvi falar que isso (hiperinsulinemia) seria comum nesse tipo de trabalho (enfermagem). Depois que fiquei sabendo que tinha esse distúrbio, soube de três ou quatro pessoas nessa área que também se descobriram com isso. (Catarina, E-CC).

Acredito que a causa do hipertireoidismo pode ter sido a sobrecarga de trabalho. (Giana, E-PA).

Apesar do aparecimento de doenças relacionadas à sobrecarga emocional, não havia manifestação de desejo por parte destes trabalhadores de troca de local de trabalho. Entretanto, evidenciou-se a preocupação com o papel social que desempenhavam, em que aquilo que é esperado do trabalhador suplanta qualquer situação e ele fará tudo para responder a isso. Destaca-se também que o trabalho em unidades críticas pode conferir status ao trabalhador, a partir do reconhecimento das suas habilidades técnicas, o que pode reforçar a resistência de troca de local e o desafio de começar tudo de novo em um outro ambiente de trabalho.

As alterações imunológicas também foram relacionadas à depressão psicológica, sendo este fato aceito por muitos pesquisadores como uma vinculação indubitável. Sobre essa questão, assim se expressaram:

[...] a minha plaquetopenia começou justamente quando vim para a unidade de hematoncologia. Acho que tem a ver com preparo de medicações tóxicas sem o devido cuidado. (Solange, A-HO).

[...] quando estou em férias eu não trato rinite, mas quando volto a trabalhar começa tudo de novo. Tenho propensão a problema de vias aéreas superiores, somado com o ambiente fechado, ar condicionado ligado, mudanças de temperatura, eu entro aqui e começo a espirrar. (Heloísa, E-CC).

Seria interessante averiguar o significado de os trabalhadores terem doenças crônicas provenientes do trabalho, especialmente por que a maioria deles não se dá conta ou não tem informações do alto índice de doenças entre os trabalhadores das unidades críticas. Será que percebem o potencial nocivo que seu ambiente de trabalho oferece na aquisição das doenças? É provável que não, uma vez que não há dados acerca destas questões divulgados entre eles.

Isso conduz à reflexão de que os trabalhadores escutavam pouco o seu corpo, o quanto não tinham espaço na sua vida para refletir sobre o seu trabalho e sobre as vinculações que o mesmo tem com a sua vida pessoal.

Havia uma falta de confiança no que cada trabalhador é capaz de fazer individual e coletivamente, do poder que tem, desde que organizado e atento aos objetivos que quer alcançar, podendo provocar a tendência a se acomodar, a fazer somente as ações da rotina, próprias de um cotidiano prescrito.

Diante destas manifestações de doenças crônicas provenientes do exercício laboral, os comportamentos apresentados pelos trabalhadores dividiram-se em dois grupos: no primeiro grupo, a negação dos sofrimentos diante das vivências, sendo este um mecanismo de defesa usado para diminuir a ansiedade e o estresse; no segundo, a banalização, que se expressou no reconhecimento destas situações de doença como algo indissociável da profissão, portanto, inevitável.

Em unidades críticas, isso tem outro matiz, uma vez que são locais especiais que demandam um alto grau de especialização do trabalho da equipe de enfermagem13, bem como competência emocional do trabalhador, não se podendo substitui-lo por outro imediatamente. Exige do trabalhador um treinamento adequado, uma afinidade para atuar em unidades fechadas e uma resistência diferenciada dos demais que atuam em outras áreas hospitalares.

Foi observado que, ao término dos plantões, as enfermeiras e auxiliares de enfermagem tinham a aparência de quem estava chegando ao trabalho, pois não manifestavam ou aparentavam cansaço físico ou mental. Estas questões evidenciaram bem a naturalização de uma noite de trabalho com a realização de atividades estafantes. Fica reforçada a idéia de que tem que ser assim, e parece que a questão central da banalização reside em procurar ficar bem, o que seria saudável se não fosse a negação do cansaço, do sofrimento, a negação do direito e do desejo de repousar para repor as energias investidas no trabalho.

Muitos referiram que somente sentem seu corpo cansado imediatamente após a passagem de plantão ou ao chegar em casa, ou seja, quando podem pensar sobre si mesmos. Como é possível anestesiar os sentidos e o corpo desta forma? É possível que este processo de não se sentir se estenda para além do corpo e da mente e alcance a banalização do outro, de si e da própria assistência de enfermagem no cotidiano.

O trabalhador pode optar em ser indiferente para consigo mesmo tratando-se como objeto, ser um estranho para si, ou se cuidar, atendendo às suas próprias necessidades de crescimento e desenvolvimento. Pode transformar-se em seu próprio guardião, por assim dizer, e assumir a responsabilidade pela sua vida14.

Esta afirmativa sinaliza para a importância do trabalhador assumir-se, buscando o crescimento como pessoa e, como conseqüência, tornando-se um trabalhador com mais condições de ser e de estar junto aos seus pacientes.

Neste aspecto, a inexistência de salas de repouso adequadas para a Enfermagem, especialmente para o repouso noturno, chamou a atenção. Mas o que causou espanto é este fato não ter sido mencionado por nenhum dos 46 trabalhadores participantes da pesquisa. Por que isso é tão natural para esse grupo que convive com os outros profissionais, os quais têm todos esses direitos assegurados? Por que a Enfermagem aceita realizar seu descanso em locais como salas para lavagem de materiais, rouparia, cozinhas, sem questionar ou reclamar? Seriam a baixa auto-estima do grupo ou a banalização do seu trabalho, as respostas para tal acontecimento? É possível que sim, somado à história de submissão, subserviência e ao que se espera desses profissionais no hospital.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Além da responsabilização que o trabalhador de enfermagem deve ter sobre sua saúde, é importante destacar que as instituições de saúde nas quais eles atuam devem cumprir com sua parcela. No desenvolvimento desta pesquisa, observou-se que não há evidências claras de comprometimento destas instituições com a saúde dos seus trabalhadores, uma vez que não há um monitoramento da saúde dos mesmos no sentido de evitar as doenças ou de tratá-las quando elas se manifestam.

A implantação de programas direcionados à saúde do trabalhador nos dois hospitais, envolvendo trabalhadores expostos continuamente a um trabalho exigente, extenuante, em que mobilizam muitos pacientes, permanecem em pé por 6 ou 12 horas contínuas, têm contato com produtos químicos tóxicos diariamente, poderá contribuir para a redução desses problemas.

Alguns trabalhadores dizem que, quando há pouco pessoal, a sobrecarga, a insatisfação, a angústia e os sinais de estresse e de cansaço físico e mental manifestam-se, o que traz frustração, tendo em vista não conseguirem realizar todas as atividades previstas. Um trabalhador diz ter dificuldade de se dar conta do desgaste físico e mental que vai ocorrendo gradativamente e refere que:

[...] Por mais que os dias passem e alguns sejam mais calmos, a gente vai acumulando cansaço... Quando o plantão está calmo, a gente tem a "falsa sensação" de que não está cansada, falsa porque ele vai se acumulando ao longo do tempo. (Giana, E-PA).

Um outro aspecto evidenciado por alguns trabalhadores de enfermagem foi a necessidade de respiradouros, para que o trabalho se tornasse mais leve. Isso se expressa na satisfação dos trabalhadores de realizarem suas tarefas em um ambiente com música, principalmente no turno da noite, onde o trabalho prolonga-se por 12 horas ininterruptas, provocando cansaço e estresse. O efeito da música é relatado na fala a seguir:

[...] No nosso turno, a gente sempre traz um radinho para escutar música. Eu gosto muito de trabalhar assim, a música relaxa, acalma... (Denise, A-PA).

A partir disso, como chegam em suas casas? Que trocas podem efetivar com seus familiares, se muito da energia que tinham foi gasta e não se deram o direito/dever de repô-las?

Observou-se que alguns trabalhadores atuavam durante 18 ou 24 horas ininterruptamente, sem repousar. Essa questão demanda uma reflexão, uma vez que o repouso após o trabalho é também um dever, uma obrigação do trabalhador, pois dele depende a capacidade de cuidar com qualidade nas jornadas subseqüentes. Porém, isto não é somente responsabilidade do trabalhador, embora a condição de sua consciência o seja.

O caminho que conduz ao trabalho saudável é o mesmo que respeitar a identidade em sua construção plena dentro de um trabalho cuja organização seja eticamente prescrita, respeitando os potenciais e limites da condição humana5.

Banalizar o sofrimento como forma de manter o equilíbrio não será uma atitude que traga benefícios duradouros, mas fugazes, e que transformam o cuidado em uma ação destemperada, unilateral, porque minimiza as possibilidades de relações dialógicas.

Não há estratégias comprovadamente úteis para fazer do trabalho na enfermagem um processo de desenvolvimento do sujeito, nem há fórmulas para que os trabalhadores enfrentem o sofrimento em seu trabalho com maturidade, buscando significados superiores para a sua existência. Mas isso não significa que se tenha de parar de buscar, refletir e experimentar formas de organização em que a humanidade dos homens não seja mera retórica, ou mais uma das tantas maneiras de justificar nossos próprios comportamentos.

Ao contrário de afastar as responsabilidades que competem a cada um, os indivíduos precisam tomar atitudes que combatam o processo de banalização, sob pena de não alcançarem o prazer, o conforto e o bem-estar, os quais podem auxiliar na construção de um cotidiano laboral mais equilibrado, e perderem de vista seus ideais, faróis que podem iluminar o caminho.

 

Referências

1. Leopardi MT. A vida do trabalhador como centralidade no trabalho. In: Leopardi MT, organizadora. O processo de trabalho em saúde: organização e subjetividade. Florianópolis (SC): Papa Livros; 1999.

2 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo (SP): Cortez; 1992.

3 Beck CLC. Da banalização do sofrimento à sua re-significação ética na organização do trabalho. Florianópolis (SC): UFSC; 2001.

4 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo (SP): Atlas; 1994.

5 Dejours C. A banalização da injustiça social. Rio de janeiro (RJ): FGV;1999.

6 Dejours C. Por um novo conceito de saúde. Rev Bras Saúde Ocupacional 1986;abr/jun,14(54):7-11.

7 Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social.3 ª ed.. São Paulo (SP): Atlas; 1991.

8 Trivinõs A. A Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo (SP): Atlas; 1987.

9 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde.3 ª ed.. São Paulo (SP): Hucitec; 1994.

10 Pitta A. Hospital: dor e morte como ofício (3ª ed.). São Paulo (SP): Hucitec, 1994.

11 Silva MAD. Quem ama não adoece: o papel das emoções na prevenção e cura das doenças 16 ª ed. São Paulo (SP): Best Seller; 1998.

12 Tonhom SFR. Queixas de mal-estar entre os trabalhadores da equipe de enfermagem de um hospital geral público [dissertação de mestrado]. Ribeirão Preto (SP): Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/ USP; 1997.

13 Santoro DC. Situação do sistema de saúde no Brasil e os cuidados desenvolvidos nas unidades de terapia intensiva. Esc Anna Nery Rev Enferm 2001 ago;5(2):259-61.

14 Mayeroff M. A arte de servir ao próximo para servir a si mesmo. Rio de Janeiro (RJ): Record;1971.

 

 

Recebido em 02/01/2006
Reapresentado em 02/06/2006
Aprovado em 19/06/2006

 

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