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CAPES

Volume 4, Número 1, Jan/Abr - 2000

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O método "história de vida" e seu uso em pesquisa de enfermagem com gestante HIV positivo

 

The use of life history in a survey with HIV positive pregnant women

 

El método de la historia de vida y su uso en una investigación con mujeres embarazadas VIH positivo

 

 

Maria das Graças Martins RibeiroI; Rosângela da Silva SantosII

IMestre em enfermagem, professora assistente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora
IIDoutora em Enfermagem, Professora Titular da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta considerações sobre o Método "História de Vida" e sua aplicabilidade em pesquisa na Enfermagem, cujo objeto de estudo foi a percepção de gestantes HIV positivo acerca de sua soropositividade. O método permitiu a emergência da subjetividade nos relatos, trazendo à tona sentimentos, emoções, reflexões e críticas acerca de situações vivenciadas. O momento da realização do teste foi descrito como de tranqüilidade, contrastando com o momento do recebimento do resultado, que foi de choque. Após o recebimento do resultado do teste, surgiu a ansiedade ocasionada pela preocupação com a transmissão vertical, com a orfandade dos filhos, medo da morte e da discriminação.

Palavras-chave: Cuidados de enfermagem - Gravidez - HIV positivo


ABSTRACT

This paper has the purpose of making a few remarks about the life history method. It also aimed at reporting a survey which used such method and whose object of study was the perception of pregnant women about being HIV positive.

Keywords: Nursing care - Pregnancy - HIV positive


RESUMEN

El presente trabajo tiene el objetivo de buscar consideraciones de algunos autores sobre la Historia de Vida, como también relatar nuestra experiencia con el uso del método que fue empleado en una investigatión sobre la perceptión de mujeres embarazadas VIH Positivo acerca de su efermedad.

Palabras claves: Cuidados de enfemería - Gravidez - VIH positivo


 

 

INTRODUÇÃO

A decisão pela abordagem qualitativa num estudo sobre a percepção da gestante HIV positivo acerca de sua soropositividade foi simples e óbvia, pois, como salienta Minayo (1993), a escolha pela pesquisa qualitativa em saúde não é uma opção pessoal ao abordar a realidade, mas uma necessidade, dada a característica do objeto do conhecimento, que é o ser humano e a sociedade. Um ser humano não se revela apenas em números, e nem tão pouco são clones uns dos outros. No entanto, estivemos momentaneamente diante de um pequeno dilema ao ter que escolher um método dentro da abordagem qualitativa.

Após algumas conjecturas e ponderações, a respeito do objeto e sujeitos da pesquisa e a realidade em que estes se encontravam imersos, optamos pela História de Vida. Já é bastante divulgado que a AIDS traz consigo uma carga de preconceito muito grande devido a sua ligação, no imaginário coletivo, com temas tabus em nossa sociedade, como a morte, homossexualidade e uso de drogas injetáveis. É uma doença associada à desordem moral, por ter sido classificada desde o seu aparecimento às DSTs. Tal fato não ocorreu com a hepatite B, que também se transmite sexualmente e através do sangue.

O estudo foi realizado com gestantes portadoras do HIV, e pudemos observar que elas naturalmente procuravam manter esta situação em segredo. Em vista disto, vimo-nos na contingência de buscar um método que fosse apropriado a este tipo de situação, e percebemos que o método História de Vida atenderia a este propósito.

Camargo (1984) considera que a história de vida é bastante apropriada a estudos de situações sociais, que envolvem sigilo, tornando indispensável o conhecimento íntimo dos sujeitos, para fazer emergir "tendências obscuras que moldam a realidade social de diversas categorias". A autora ainda afirma que não é por casualidade que os ganhos sociais iniciais e visíveis da história de vida foram em estudos sobre comportamentos considerados desviantes pela sociedade, especialmente sobre delinqüência infantil, criminalidade e uso de drogas, realizados pela Escola de Chicago.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO "HISTÓRIA DE VIDA"

Bertaux (1980) define o método História de Vida como um procedimento metodológico que utiliza a história de uma vida, narrada ao entrevistador tal qual foi vivenciada pelo sujeito, levando o pesquisador a enfocar o ponto de convergência ou divergência dos seres humanos, em suas condições sociais, da cultura e da práxis, assim como as relações sócioestruturais e da dinâmica histórica.

Segundo Becker (1987), a primeira obra publicada que utilizou a história de vida sociológica foi de Thomas e Zananiecki, em 1927, seguida de uma série de Clifford, Shaw e outros. Foram histórias de vida trazidas do período entre guerras, por estes sociólogos de Chicago, e também, na mesma época, na Polônia, a partir das memórias compiladas entre camponeses, operários e desempregados. Longe de serem obras marginais, estas pesquisas constituíram na época uma das principais correntes da sociologia empírica dos Estados Unidos e Polônia.

No entanto, é a antropologia a disciplina que tem a mais antiga tradição na tomada dos relatos de vida, iniciada já no século XIX. A partir da década de 20, o método ganhou maior expansão na antropologia americana, devido à expansão colonial. Urgia registrar o testemunho de culturas, que fatalmente seriam extintas pelo impacto colonizador, e assim preservar um patrimônio.

Após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, a partir de 1945, esta forma de observação dos processos sociais passou a ocupar uma posição secundária na investigação social, porque os sociólogos da época tornaram-se mais preocupados com a teoria abstrata.. Disto resultou o abandono deste tipo de abordagem durante um longo período.

Entretanto, as agitações sociais do final dos anos 60, com seu maciço impacto ideológico, foram, segundo Bertaux (1980), responsáveis pela mudança desta situação, levando a sociologia mundial a experimentar uma grande diversidade e riqueza de teorias e métodos, sem que nenhum deles possa exigir a hegemonia ou o monopólio de cientificidade.

O desenvolvimento tecnológico, na medida em que o uso do gravador substituiu os apontamentos manuscritos no campo, ou mesmo memorizados, de forma muitas vezes imperfeita e incompleta, pode explicar o recrudescimento do interesse pelo método biográfico, onde o discurso do ator é documentalmente registrado em fita com suas palavras precisas, emoções, tonalidade, ênfase e omissões (Brioschi e Trigo, 1987).

Assim, após 30 anos de abandono, ou seja, a partir dos anos 70, os estudos sociológicos baseados em narrativa de vida começaram a reaparecer, registrando um aumento significativo do número de trabalhos de pesquisa, que empregam o método biográfico. Num levantamento de abrangência internacional, Bertaux (1981) constatou que este método alcançou maior expressividade na área das ciências humanas. Camargo e colaboradores (1984) ao realizarem um levantamento preliminar, mostraram que o mesmo ocorreu aqui no Brasil. Observou Glat (1989) que História de Vida tem sido utilizada no Brasil nas áreas de sociologia (Camargo, 1981), antropologia (Barros, 1981; Salem,1981) e psicologia da cultura (Angram, 1983).

O método vem sendo utilizado também na área de Enfermagem. Na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) encontramos especialmente em dissertações de mestrado e teses de doutorado. São alguns destes trabalhos: Santos, 1995; Silva, 1996; Assad, 1997; Santos, 1998; Rubio, 1999; Ramos, 1999; Ribeiro, 2000; Cabezas, 2000. Uma disciplina eletiva denominada "Métodos Qualitativos com a abordagem em História de Vida" tem sido oferecida, semestralmente, para alunos dos cursos de Mestrado e Doutorado em Enfermagem. Cabe registrar que a referida disciplina tem sido procurada, também, por alunos de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UERJ e da USP.

O mérito de tentar uma reorientação do uso do método História de Vida deve-se a Daniel Bertaux, que procurou estabelecer a ordem conceitual e metodológica, corrigindo e alertando para alguns usos indevidos ou impróprios. Bertaux (1981) propõe, contrariamente aos métodos usuais em sociologia, que fragmentam a investigação em várias etapas, sem necessariamente haver reflexão em todas elas, que o método da abordagem biográfica introduza a reflexão em todas as etapas da pesquisa. É uma conjugação de observação e reflexão. É a construção de uma teoria, passo a passo com a descoberta dos fatos. Há uma combinação de exploração e questionamento, dentro do contexto de um diálogo com o informante, onde o pesquisador deve estar preparado para conhecer o "esperado, assim como o inesperado" (Thompson, 1980).

Dentro dessa perspectiva, Brioschi e Trigo (1987) afirmam que a história de vida estaria dentro de procedimentos metodológicos e epistemológicos definidos, justificando o seu status de método e não apenas técnica.

A história de vida, nos lembra Kohli (1980), não é uma coleção de todos os eventos do curso de uma vida, mas uma construção da história de uma vida, onde são representados aqueles aspectos de seu passado que ele julga relevante no presente. Assim, ela contém um elemento reconstrutivo aonde o narrador vai formando auto-imagens estruturadas, dando a sua interpretação pessoal sobre os fatos de sua própria vida. É uma interpretação e representação que o sujeito faz destes fatos de acordo com suas crenças, valores e demais códigos.

Glat (1989) ressalta que "o passado é sempre reconstruído através das exigências do presente, pois, por mais objetivo que se tente ser, toda lembrança ou relato é uma reconstrução imaginativa que pode ser mais ou menos próxima à realidade vivenciada". Portanto, os dados que o investigador terá em mãos serão os eventos vistos sob o prisma e o crivo perceptivo do narrador. Nas palavras de Brioschi e Trigo (1987) "o narrador conta a sua vida hierarquizando, valorizando ou desvalorizando determinados aspectos, reforçando outros, imprimindo à narrativa a sua visão pessoal e subjetiva".

O sujeito reflete sobre sua vida, enquanto a narra no contexto do presente, liberando seu pensamento crítico, que, além de selecionar os fatos, determina o significado atribuído a eles, realizando um verdadeiro balanço de sua vida. Kohli (1980) considera "que a história de vida, tem uma função avaliadora, mesmo que o sujeito não tenha consciência disto, e ao realizar este balanço, o sujeito reafirma ou mesmo constitui sua identidade, e elabora suas intenções, pelas quais guia suas ações atuais". É comum ouvirmos em um diálogo informal alguém comentar sobre um fato passado, que seria desenrolado de maneira diferente, caso ocorresse naquele momento presente.

Brioschi e Trigo (1987) esclarecem que no relato de vida o indivíduo em si não é o objeto de estudo, mas sim as relações nas quais se encontra imerso, sendo ele o fornecedor da matéria prima, cabendo ao pesquisador a apreensão da realidade vivida. Nas palavras de Glat (1989) "os dados são o material por excelência para o estudo não do vivido, mas sim da cultura viva."

Quanto à entrevista realizada no Método História de Vida, Glat (1989) enfatiza que "toda entrevista individual traz à luz direta ou indiretamente uma quantidade de valores, definições e atitudes do grupo ao qual o indivíduo pertence". Ainda nas reflexões da autora, isto significa que, apesar das diversidades dos relatos e das variações individuais, o pesquisador encontrará um núcleo fixo, um fio condutor, que caracteriza o grupo ao qual pertencem os sujeitos. Isto porque o indivíduo desenvolve muito de sua identidade pessoal, enquanto parte de um grupo de referência.

Portanto, através do relato de histórias de vida individual pode-se caracterizar a prática social de um grupo. Histórias de vida, por mais particulares que sejam, observa Bertaux (1980), são sempre relatos de práticas sociais, que expõem as maneiras como o indivíduo se insere e atua no mundo e no grupo do qual ele faz parte.

 

TÉCNICA DE COLETA DE DADOS

A técnica utilizada para a coleta de dados na História de Vida é a entrevista aberta, onde não deve haver perguntas predeterminadas e padronizadas. Segundo Minayo (1993), entrevista aberta é aquela em que o informante discorre livremente sobre o tema que lhe é proposto. O entrevistado tem, também, a liberdade para desenvolver cada situação, em qualquer direção que considere adequada. É uma forma de poder explorar mais amplamente a questão. A ordem dos assuntos abordados não obedece a uma seqüência rígida, e sim, é determinada freqüentemente, pelas próprias preocupações e ênfases que os entrevistados dão aos assuntos em pauta.

A interferência do pesquisador deverá limitar-se ao mínimo indispensável, pois o material obtido deverá ser um discurso onde categorias, ordem cronológica e distribuição no tempo são dadas pelo narrador. É importante explicitar para os sujeitos que eles podem falar sobre o que julgarem importantes para eles. O pesquisador que utiliza a história de vida deve sempre ter em mente que quem está na posição de comando é o pesquisado, que deve falar o que é importante para si.

Como salienta Glat (1989), aí temos a garantia de que "a tendência observada ou os fatos considerados dignos de interesse científico, são apontados pelos próprios sujeitos e não aqueles que o pesquisador, de fora e a priori, achava que ia encontrar". A autora nos lembra ainda que o método História de Vida tira o investigador do alto de seu pedestal de dono do saber, senhor da verdade, e o coloca na posição de ouvinte. Ele deverá ouvir o que o sujeito tem a dizer sobre si mesmo, aquilo que ele acredita que seja importante e marcante para sua vida. O sujeito não é visto como um objeto passivo de estudo. A avaliação de sua própria vida é feita por ele, e deve haver um grande respeito pela sua opinião.

É importante que o pesquisador tenha tido contatos prévios com os sujeitos. A importância da qualidade destes contatos é enfatizada por Camargo (1984). A autora valoriza a identificação e empatia entre o pesquisador e os sujeitos de seus estudos. Ela diz que a cumplicidade controlada é o pré-requisito para a boa informação, e que pesquisado e pesquisador inconscientemente se influenciam uns aos outros, não apenas pelas palavras mas também pelos gestos, pela inflexão da voz, expressão fisionômica, olhar, aparência e outros traços pessoais e manifestações do comportamento.

Além desta empatia, o entrevistador poderá ainda utilizar determinadas atitudes, posturas que irão incrementar ainda mais a tomada dos relatos. Desta forma, quando o sujeito entra num assunto que interessa ao pesquisador, mas ele mostra-se pouco claro, o pesquisador pode estimular o discurso do narrador, mostrando interesse e solicitando-lhe um aprofundamento na questão, ou então formular nova pergunta. É preciso estar atento também para evitar as perguntas diretivas, que podem ter um clássico monossílabo como resposta e parar por aí.

Bertaux (1980) salienta que a entrevista na história de vida deve ser uma escuta atenta, mas não passiva. As informações devem ser sistematicamente confrontadas com as evidências disponíveis, durante todos os estágios da entrevista. Assim, quando se ouve algo que contradiz ou anula o que já foi dito, o investigador pode e deve pedir mais explicações, observando maneiras sutis de abordagem que em vez de inibir a fala, deve estimulá-la.

No entanto, nesta abordagem, deve-se utilizar uma linguagem comum, ao alcance dos entrevistados, evitando as de duplo sentido e a indução.

Deve-se, porém, observar o momento certo destas intervenções, que nem sempre pode ser no exato momento da escuta do dito, com o risco de se interromper a linha de raciocínio. Se o narrador estiver empolgado na narrativa, é melhor não interrompê-lo, para não desviá-lo do caminho que está seguindo. Anota-se rapidamente e na primeira pausa feita por ele, ou ao final da entrevista, volta-se àqueles pontos que pareceram obscuros, e que para ele, conhecedor profundo de sua vida, não é.

Camargo ressalta (1984) que, dependendo dos objetivos da pesquisa, aos sujeitos poderão ser solicitados, discorrerem livremente a respeito de suas vida, ou a falarem apenas sobre um aspecto específico da sua experiência de vida, ou seja, determinado acontecimento vivenciado pelos mesmos. Na primeira forma, teríamos o relato de vida em sua forma mais pura e livre, onde o pesquisador pede aos sujeitos que falem sobre sua vida, e na segunda forma, o investigador pede que o narrador fale apenas sobre parte de sua vida, ou seja, a respeito de um determinado aspecto, objeto da investigação.

 

A ESCOLHA DOS NARRADORES

Quando o método é a História de Vida, em se tratando de quais serão os informantes, Camargo (1989) defende a posição de que "jamais seguiremos critérios aleatórios de tipo formal ou científico, pois nossa seleção dependerá de uma categoria muito especial de indivíduo: aquele que quer falar".

Em se tratando de quantos serão, na História de Vida não se tem um número predeterminado de sujeitos, estabelecidos a priori. A pesquisa pode ser realizada com um único indivíduo, como com 5, 10, 20 ou 100. Isto dependerá do objeto do estudo.

Quando se busca elementos generalizáveis nos relatos individuais, deve-se atingir o ponto de saturação, definido por Bertaux (1980) como sendo "o fenômeno através do qual, passado um certo número de conversações, o pesquisador tem a impressão de que não apreende mais nada de novo, pelo menos no que diz respeito ao objeto da pesquisa". No caso do presente estudo, atingimos este ponto de saturação com 10 gestantes.

 

O RELATO DA EXPERIÊNCIA COM O MÉTODO

O estudo foi realizado com gestantes HIV positivo que estavam sendo assistidas no Serviço de Assistência Especializada (SAE), de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais. O SAE é um serviço que presta atendimento ambulatorial em DST/AIDS, ligado administrativamente à Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora. O SAE foi escolhido como cenário do estudo, pela possibilidade de se ter acesso a um maior número de gestantes HIV positivo, já que todas elas que fazem o Pré Natal na rede pública são encaminhadas a este serviço, para a utilização da terapêutica anti-retroviral, visando a redução da transmissão vertical da infecção pelo HIV.

O objeto deste estudo foi a percepção da gestante HIV positivo acerca da sua soropositividade. Os objetivos foram descrever a reação e vivências dessas gestantes em relação ao teste anti-HIV, identificar as repercussões que a soropositividade teve em suas vidas até o momento da entrevista e por fim analisar a percepção dessas gestantes acerca da sua soropositividade.

O SAE estabelece como rotina que o primeiro atendimento à gestante seja feito pela enfermeira. Participamos deste atendimento de abril de 1998 a junho de 1999, para uma aproximação maior com as gestantes e com os profissionais envolvidos neste serviço, visto não ser a instituição onde exercemos atividade prática de docente, porém os dados foram colhidos entre março de 1999 a junho do mesmo ano.

Estes contatos preliminares, com os possíveis sujeitos da pesquisa, foram importantes, considerando as peculiaridades do método e o fato de que as pessoas têm certa inibição ou receio em contar sua vida ou parte dela para outras que não compartilham de sua intimidade. Em se tratando do HIV/AIDS, este receio se acentua ainda mais, pois envolve aspectos da vida de caráter muito íntimo, e que às vezes os envolvidos prefeririam manter em segredo. Estes contatos possibilitaram-nos angariar a confiança delas, constituindo um período de ambientação.

Desta forma, os sujeitos do estudo foram 10 mulheres que se dispuseram a falar sobre uma parte de suas vidas. Garantimos o sigilo e o anonimato das mesmas utilizando nomes fictícios e o consentimento livre e esclarecido preconizado na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Realizamos algumas perguntas, antes do início da entrevista propriamente dita com a intenção de caracterizar os sujeitos: idade, escolaridade, situação marital, profissão, situação empregatícia, renda pessoal e familiar, número de filhos e outros dados.

Para maior segurança, fidelidade e veracidade, as entrevistas foram documentadas através de gravação em fitas magnéticas. O uso desta técnica garante ao pesquisador registrar informações mais fidedignas. Santos (1993) ressalta que a gravação tem a vantagem de registrar todas as impressões orais imediatamente, deixando o entrevistador livre para prestar atenção no entrevistado. Foram anotados num diário de campo, gestos, atitudes e outras formas de expressão.

As entrevistas foram marcadas respeitando a disponibilidade e a privacidade das gestantes, sendo que a maioria delas ocorreu no horário normal de atendimento da Instituição, quando as mulheres estavam vindo para a consulta com o infectologista ou trazendo seu ou seus filhos para a consulta também com o infectologista.

Foi assegurado a elas discorrerem livremente determinando o curso da entrevista, sendo utilizada a seguinte questão norteadora: fale sobre sua vida, a partir do momento em que foi solicitado o exame anti-HIV. Às vezes era pedido a elas para esclarecer ou aprofundar determinado ponto.

Os depoimentos foram quase sempre muito cheios de emoção. Não há como descrever aquela emoção de estar de frente com a pessoa, olho no olho, ouvindo-a falar sobre sua vida, a vida que ela não quis, a vida que ela jamais imaginou ter, o olhar, a expressão do rosto, falando mais que qualquer palavra, as lágrimas que teimavam em cair e que eram enxugadas com as costas da mão.

Após o término da entrevista, muitas delas disseram sentir-se aliviadas porque fizeram um desabafo. Disseram não ter com quem desabafar, expondo várias razões impeditivas para isto, entre elas o medo do preconceito.

As entrevistas foram encerradas quando os sujeitos disseram não ter nada mais a dizer sobre o assunto. Os sujeitos tiveram a liberdade de se estenderem o quanto quisessem sobre determinado assunto, e de encerrar a entrevista no momento que julgassem ter dito o que queriam.

Todas as entrevistas foram gravadas e a maioria transcrita no dia seguinte, palavra por palavra, inclusive conservando os erros de português. A seguir foram digitadas, cortando as repetições e corrigindo alguns erros de português, para que a leitura ficasse mais fácil para o leitor. Alguns erros foram mantidos para não se perder a espontaneidade e originalidade.

Bertaux (1980) recomenda que a transcrição ocorra imediatamente, pois o pesquisador ainda terá nítido na memória aquelas falas, o que poderá auxiliar em caso de alguma dúvida sobre o que se está ouvindo.

Para análise dos dados obtidos, realizamos leituras de todo o material transcrito, intercalando com a audição das gravações das fitas, visando atentar para as características do discurso, como contradições, silêncios, omissões, hesitações, sentimentos aflorados e a forma de organizar o discurso. Desta forma, iniciamos o mapeamento dos discursos, a partir dos temas emergentes definidos pelas entrevistas, possibilitados pelas leituras das mesmas e guiados pelos objetivos da pesquisa. Esses agrupamentos propiciaram a associação de idéias, pensamentos e imagens que facilitaram a seleção de categorias temáticas. Utilizamos um jogo de canetas hidrocor, onde cada tema ou categoria foi grifada com uma cor, para destacar o que emergiu, e quantas vezes emergiram. A princípio destacamos um número muito elevado de categorias, mas realizando novas leituras juntamente com uma reflexão sobre as categorias selecionadas, conseguimos agrupá-las em um número menor, ocorrendo deste modo a síntese. Após esta categorização, selecionamos o material teórico. Esta é mais uma das peculiaridades do método: o pesquisador busca o referencial teórico somente após a identificação das categorias, pois ele deve ir para a coleta de depoimento preparado para encontrar o esperado e o inesperado.

As categorias identificadas foram agrupadas, para uma melhor compreensão, em três momentos: a gestante e o pedido de exame anti-HIV e a gestante e o resultado positivo do exame anti-HIV e a gestante HIV positivo após o resultado.

No primeiro momento, caracterizado como a gestante e o pedido de exame anti-HIV, a realização do teste foi considerada pela maioria destas clientes, 90% do total, como um momento de tranqüilidade, por não se julgarem pessoas que tenham vivido situação de risco.

No segundo momento, caracterizado como a gestante e o resultado positivo do exame, as gestantes relataram reações imediatas que traduziram choque e medo da morte, emoções estas que afloraram quase sempre junto com muitas lágrimas. Obviamente esta reação de choque era esperada, tendo em vista a ausência da consciência de risco, que mobilizava quase todas elas. O medo da morte surgiu não só pela morte em si mas também pela morte por Aids, associada à desfiguração progressiva do corpo, dolorosa e triste, com muito sofrimento.

No terceiro momento, caracterizado como a gestante HIV positivo após o resultado do exame, evidenciaram-se os pilares que passam a sustentar a vida dessas mulheres. São as diversas preocupações, que se apresentam no bojo da realidade de ser uma gestante portadora do HIV. Surge a preocupação com a estigmatização, onde emerge o medo de que elas e seus filhos percam a aceitação social. Adveio a preocupação com o relacionamento do casal por ocorrer uma inculpação mútua, gerando muitas discussões, brigas, mágoas, ressentimentos e decepções que desestabilizam a vida em comum. Mereceu, também, ser analisada a preocupação com a violência, que levou duas mulheres a omitirem o diagnóstico a seu companheiro. Isto se deve ao fato de ser uma doença transmitida pelo sexo e a sexualidade feminina ainda ser vista em nossa sociedade como do controle masculino.

Mas, entre as várias preocupações, desponta um pilar central, onde as gestantes infectadas assentam o principal de suas emoções, que é a preocupação com os filhos. Elas demonstraram uma grande responsabilidade pela saúde futura do filho, assim como uma intensa preocupação com a orfandade dos mesmos, diante das limitações de recursos sociais com que elas pudessem contar. A orfandade ocasionada pela Aids é uma realidade que não pode ser desconsiderada. Estima-se que atualmente existam 9 milhões de órfãos no mundo, devido ao HIV.

Mas a sua maior preocupação foi com a possibilidade de transmissão ao filho, não só pelo sentimento de culpa que experimentam como, também, pelo destino dos filhos portadores, pois pensam que ninguém vai querer adotar uma criança portadora do vírus. Na verdade, é uma preocupação plenamente justificável. São efetivamente mais difíceis as adoções de crianças com necessidades especiais ou com graves problemas de saúde.

Badinter (1985), em uma pesquisa histórica sobre a evolução do sentimento materno, lembra que, entre os séculos XVII e XVIII, o comportamento da mãe em relação à criança era de indiferença e rejeição, reflexo da ideologia acerca da maternidade, existente na sociedade daquela época, onde se buscava uma educação esmerada em conceituados estabelecimentos educacionais tradicionais, na maioria das vezes em outro país. Mas, a partir daí, devido à alta taxa de mortalidade infantil, uma vez que as crianças eram entregues aos cuidados de ama de leite até os 05 anos de idade, por influência governamental, os filhos retornam aos cuidados maternos. Os esforços envidados pela sociedade resultaram que a mãe passou a sentir-se inteiramente responsável pela sobrevivência e saúde do filho, logo a partir da concepção. A educação moral do filho ficou, também, a cargo da mãe. A função materna, levada ao seu limite extremo, só terminaria quando a mãe tivesse dado à luz a um adulto de bem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso do método História de Vida permitiu identificar lacunas importantes no que se refere a conhecimentos, atitudes, valores elaborados socialmente pelas gestantes HIV positivo. Possibilitou, também, emergir a subjetividade, propiciando a manifestação de sentimentos sonhos e fantasias, além de ter promovido uma reflexão pela cliente, permitindo-a identificar e expressar suas preocupações, temores e dificuldades concretas, que surgiram após o diagnóstico.

Desta forma, percebemos que as gestantes reproduzem o que circula na sociedade sobre o estigma da Aids: uma doença que mata, vinculada ao homossexualismo masculino, promiscuidade sexual e uso de drogas endovenosas. A gestante é atingida por várias preocupações que geram ansiedade, o que por sua vez pode levar à angústia. Há uma preocupação com o relacionamento conjugal que fica abalado pela inculpação mútua. Porém, o foco central das preocupações é o filho. Há a preocupação com a transmissão do HIV a ele, com a orfandade do mesmo, com a possibilidade de discriminação que possa sofrer.

A compreensão da percepção que a gestante tem de sua soropositividade, assim como do significado de todas as suas preocupações, é essencial na formulação de diagnósticos de enfermagem, oferecendo-nos maiores e melhores subsídios para uma intervenção mais adequada, no atendimento a esta clientela.

Deparamo-nos com uma questão atual séria e ética que é a omissão da condição de soropositividade da mulher em relação ao seu companheiro. Estamos frente a questões da bioética, que, segundo a Encyclopedia of Bioethics, é conceituada como: "o estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princípios morais" (Bellino, 1997,p.21). Precisamos urgentemente ampliar a discussão e reflexão a este respeito e re-avaliarmos o nosso cotidiano, público e privado, e decidirmos o que fazer, como fazer e se o que fazemos é o que devemos continuar fazendo. Precisamos re-pensar a quem temos beneficiado com a nossa prática e a quem queremos beneficiar. A enfermagem deve ter o compromisso com o cliente e com a assistência prestada. Não somos, no entanto, responsáveis por decisões e opções de nossos clientes (ou somos?). Cabe lembrar que existe, também, um dilema jurídico, na medida em que a opção por um determinado comportamento coloca em risco a vida de outrem. Portanto, a enfermagem não pode e não deve atuar isoladamente, deve tomar decisões a partir de um trabalho em equipe, multi e interdisciplinar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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