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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 2, Abr/Jun - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160034

PESQUISA

Percepção dos monitores sobre a influência do programa de educação pelo trabalho na formação em saúde

Ana Paula Gossmann Bortoletti 1
Erica Rosalba Mallmann Duarte 2
Alcindo Antonio Ferla 2
Gimerson Erick Ferreira 2
Míriam Thaís Guterres 2


1 Centro Universitário Internacional. UNINTER. Curitiba, PR, Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil

Recebido em 09/02/2015
Aprovado em 09/03/2016

Autor correspondente:
Ana Paula Gossmann Bortoletti
E-mail: ana.bortoletti@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: O estudo teve como objetivo conhecer a influência do PET - Gestão na percepção de monitores, em relação à formação em saúde e a influência do programa em seu desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional.
MÉTODOS: Trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa. Participaram da pesquisa 14 monitores do PET Gestão. Para coleta de dados, utilizou-se a técnica de entrevista aberta ou em profundidade. A análise de dados se deu mediante a análise de conteúdo.
RESULTADO: Os dados demonstraram que a inserção destes monitores nos campos de atuação favorece um aprendizado problematizado, podendo possibilitar a formação de profissionais críticos, proativos, autônomos e com olhar mais amplo sobre as redes de saúde.
CONCLUSÃO: Conclui-se a necessidade de dar continuidade de ações, que fortaleçam o encontro da academia com os cenários de desenvolvimento do cuidado e a produção de conhecimentos onde se encontram todos os atores envolvidos no processo de produção da saúde.


Palavras-chave: Recursos humanos em saúde; Educação em saúde; Política de saúde; Serviços de saúde.

INTRODUÇÃO

A discussão acerca da gestão dos serviços de saúde acompanha os diferentes arranjos dos sistemas de saúde brasileiros e, portanto, iniciou-se muito antes do Sistema Único de Saúde (SUS) como o conhecemos. O marco dessa discussão na formulação do sistema de saúde atual deu-se em 1988, por meio da Constituição Federal que criou o SUS e com ele as diretrizes de descentralização, integralidade e participação da comunidade. Essas diretrizes tiveram detalhamento em outro marco legal, mas é no texto constitucional que tem registrados desafios para um sistema de saúde com dimensões continentais. A gestão em saúde dá-se por meio do entrelaçamento dessas diretrizes, considerando a intersetorialidade, a visão sistêmica e ampliada das necessidades de um indivíduo e ou de uma coletividade, e a contextualização da implementação de ações em diferentes redes e tramas1. Contudo, tornar efetiva a incorporação acerca desses valores no processo de trabalho e na formação dos trabalhadores permanece um desafio, ao mesmo tempo em que articular a interseção entre esses dois universos, tanto de ensino como de serviço é primordial. Alterar a conjuntura atual implica em apostar numa formação profissional que vislumbre os processos individuais, coletivos e institucionais, favorecendo a produção de saúde, não apenas como prestação de atos curativos, mas utilizando-se de equipe multiprofissional e interdisciplinar e de práticas inovadoras2. Sobretudo, compreender a gestão no contexto dos desafios do cotidiano dos serviços e sistemas de saúde e, portanto, também como campo de aprendizagem e produção de conhecimentos, é um desafio impostergável também para as instituições de ensino.

É nesse panorama, juntamente com as transformações epidemiológicas e demográficas no Brasil, que se revela a necessidade de novos debates e de apresentação e formulação de políticas relativas à formação, ao desenvolvimento profissional e à educação permanente dos trabalhadores da saúde, compreendendo a atenção básica como definidora do processo de cuidado e ordenadora da rede e do processo de trabalho em saúde.

Sob essa perspectiva que o Ministério da Educação inicia os debates sobre o processo de mudanças relativo às orientações sobre a distribuição da carga horária e sobre os conteúdos de ensino obrigatório na saúde, corresponde à implementação de diretrizes curriculares nacionais. Esse processo de mudança deu-se por meio de pelos pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação que propuseram e aprovaram as diretrizes curriculares nacionais em processo que se estendeu de 1997 a 20013.

Partindo dessa premissa, o Ministério da Saúde (MS) lança em 2004 a Portaria 198/GM/M, na qual institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor da saúde4. Prosseguindo, o MS em conjunto com o Ministério da Educação (MEC) estabelece, em 2005, o Programa de Reorientação na Formação Profissional em Saúde (PRÓ-Saúde) e, em 2008, o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Ambos buscam o desenvolvimento de possibilidades diferentes de fazer educação e saúde5.

O PET - Saúde tem como propósito a integração ensino-serviço-comunidade como ferramenta de mudança na formação dos estudantes de cursos da área da saúde. Esse programa fortalece a prática acadêmica e integra a universidade, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, com demandas sociais de forma compartilhada, sinalizando para o investimento em um processo formativo contextualizado e concreto, pautado nas dimensões sociais, econômicas e culturais da população, integrando o saber popular com o saber científico e a teoria à prática6.

A participação das instituições de ensino superior no PET-Saúde dá-se por meio de tutores (docentes), preceptores (profissionais da saúde) e monitores (estudantes de graduação da área da saúde). Aos monitores cabe o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão sob a orientação do preceptor mais diretamente e do tutor de forma mais indireta. A vivência busca a disseminação de conhecimentos relevantes à atenção básica, juntamente com as atividades de iniciação ao trabalho, mediante a atuação positiva junto à comunidade e aos profissionais do serviço.

Tendo essa compreensão, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (SMS/POA), iniciou, em 2009, sua trajetória de projetos do PET-Saúde. Para ampliar a abrangência e o efeito em termos de formação profissional, os projetos PET são coordenados pela Coordenadoria de Saúde (Coorsaúde), que abrange todos os cursos da área da saúde e projetos estratégicos com capacidade de mobilização institucional para o alcance dos desafios estabelecidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais e demais normas legais para a educação das profissões da saúde7.

No período de 2012-2014, o projeto PRÓ-PET-Saúde/UFRGS se constituiu de sete, subprojetos e, dentre eles, tem-se o Projeto Gestão das Ações de Integração Ensino-Serviço e Educação Permanente em Saúde8.

O PET Gestão teve como objetivo a qualificação da gestão, por meio de uma construção sistemática e coletiva, para a implantação de uma gestão e assistência de saúde inovadora e qualificada, com bases no monitoramento, mapeamento e avaliações de ações integradas entre ensino e serviço9. Esse programa surge da necessidade de possibilitar aos estudantes, vivências de gestão em saúde, já que, em sua maioria, os cursos da saúde não oferecem experiências e conhecimentos teóricos sobre gestão.

Há algum tempo, o MS aponta a urgência acerca das discussões entre a consonância de gestão em saúde, formação de profissionais e controle social. Embora, existam propostas de transformação para os modelos de formação em saúde, por meio de mudanças de projetos pedagógicos e criação de programas como PRÓ-Saúde e o PET-Saúde, ainda assim, a formação dos profissionais tem permanecido centrada na produção de ações curativas, hospitalocêntrica e teórico-centrada distante do modelo de saúde idealizado pelo SUS, pautado no protagonismo do controle social, na gestão compartilhada e nas redes de saúde.

Para assegurar a transformação desse cenário faz-se necessário antes de tudo uma (des)construção e (re)construção dos currículos que formam esses profissionais, sendo necessário que os mesmos se pautem em torno dos princípios e diretrizes do SUS, norteado pela humanização, integralidade e cogestão junto aos usuários.

É por intermédio dessa perspectiva que se estabelece a importância de aprender e saber fazer gestão, não somente com a visão de administração e gerenciamento, mas como uma ferramenta para o cuidado integral, pois é por meio desse conhecimento que os profissionais e os futuros profissionais podem auxiliar e participar do processo de empoderamento dos usuários, tornando-se com eles corresponsáveis pelo processo de gestão e de consolidação do SUS.

Frente a esse panorama, o presente estudo buscou conhecer a percepção dos monitores do PET Gestão acerca da influência que as vivências proporcionadas por este programa tiveram para sua formação.

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva desenvolvida em um distrito de saúde do Município de Porto Alegre/RS, no qual os monitores do PET Gestão realizaram suas atividades. A amostra foi escolhida de forma intencional, após aplicar os critérios de inclusão e exclusão na população de 20 alunos que participaram do programa no período de 2012 a 2014, obteve-se uma amostra de 14 monitores e ex-monitores do PET-Gestão, independentemente de idade, sexo e curso da área da saúde. Foi adotado como critério de exclusão, participações em período menor que 30 dias.

Os dados foram coletados em novembro de 2014, por meio de entrevistas gravadas, sendo utilizada a técnica de entrevista aberta ou em profundidade nas quais o entrevistado respondeu duas perguntas de forma livre, falando sobre suas vivências no PET-Gestão. Aos participantes foi solicitado que falassem sobre suas vivências e sobre como essa experiência contribuiu na formação de cada um.

As informações foram analisadas mediante a análise de conteúdo, cuja organização ocorreu em três etapas: pré-análise, a exploração do material e tratamento dos resultados, e a inferência e interpretação dos dados10.

O estudo seguiu a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelo CEP/UFRGS, protocolo 33825114.2.0000.5347. Os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, tendo sua identidade mantida em sigilo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste momento serão apresentados os resultados oriundos da análise de conteúdo dos depoimentos dos sujeitos. Ao participarem das entrevistas, os estudantes refletiram sobre as vivências e aprendizados proporcionados pelo PET-Gestão e de que maneira essa experiência contribuiu para seu desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional. Após a interpretação das falas dos participantes foram identificadas três categorias empíricas: o saber empreendedor, aprendizado em ato e o quadrilátero da formação, que estão relatadas a seguir:

O saber empreendedor

O saber empreendedor aludido neste estudo não possui a significância do aprendizado empresarial e/ou econômico, mas sim, como a capacidade de mobilizar e ampliar saberes, de transformação e inovação, vislumbrando a autogestão para o futuro. Ser empreendedor significa ter a necessidade de realizar coisas novas e, ao mesmo tempo, pôr em prática ideias já existentes de forma inovadora, visando à solução de problemas11.

Para os alunos, o PET- Gestão proporcionou novos aprendizados, ampliou os conhecimentos sobre trabalhar em saúde, estimulou o pensamento crítico, mobilizou conhecimentos para a resolução de demandas, bem como possibilitou a reflexão sobre o futuro profissional. As falas, a seguir, demonstram essa perspectiva:

Ajudou na minha formação, por exemplo, eu acho o curso muito conservador e eu acho que eu pude levar para dentro da sala de aula algumas coisas que eu vivenciei que talvez não fossem trazidas pelas professoras já que elas não concordam (E8).

Estou conseguindo perceber quais coisas estão funcionando e, não estão. Como tu podes ser, tua postura, até depois quando tu estiveres formada [...] (E11).

As falas sugerem a necessidade de uma reconstrução dos métodos de ensino, do ensino teórico centrado, para o participativo e problematizado. Problematizar é um verbo catalisador para a reforma do ensino, com ele abarcamos outros verbos, como refletir, planejar, analisar, subjetivar, criar, recriar, envolver, inserir, responsabilizar e transversalizar12. A conjugação desses verbos de forma viva durante a formação origina futuros profissionais capazes não somente de perceberem problemas, mas de mobilizar conhecimentos e experiências para criar possíveis estratégias de enfrentamento das situações diversas.

Apostar na capacidade empreendedora durante o processo de formação implica em mudanças no processo de (re)construção/(des)construção de saberes, indo além das formalidades estabelecidas, desenvolvendo, assim, metodologias problematizadoras, comprometidas com o ser humano13.

Uma formação que relacione teoria e prática, mediante hipóteses e soluções é determinante para transformar a metodologia da transmissão do conhecimento e as práticas tradicionais, diretivas e acríticas, propiciando a formação de sujeitos capazes de reconhecer e atuar sobre os problemas da realidade. Tal transformação não ocorre somente com as mudanças curriculares, essa transformação necessita ocorrer no corpo docente, no modo que eles percebem os estudantes, como coparticipativos no processo de formação, estando o professor e o estudante compartilhando significados.

Segundo esses futuros profissionais, as vivências proporcionadas pelo PET- Gestão representaram a passagem do conhecimento isolado e sistemático para uma visão ampliada de saberes e de práticas, articulando teoria e prática e fortalecendo o pensamento crítico.

O PET Gestão tem aquela visão mais do geral, tu consegues ver tudo e tentar arranjar maneiras de as coisas andarem dependendo da necessidade de unidade, de cada equipe (E11).

Agora eu estou [...] no centro especializado de feridas. Lá eu observo como é que é o trabalho dela, proponho modificações para a preceptora. O bom é que ela é bem aberta a mudanças (E2).

Percebe-se a relevância que esses alunos atribuem à possibilidade de interferir de maneira positiva e proativa nas situações cotidianas. Um ensino que vislumbra a proatividade estimula os futuros profissionais a tornarem-se autores dos próprios percursos, a tomar decisões, resolver problemas, enfrentar a dúvida e o risco, e sobretudo, serem empreendedores na busca das melhores experiências de desenvolvimento e aprendizagem14.

É preciso compreender que o desenvolvimento de habilidades, o pensamento crítico e o criativo não podem ser somente fomentados em programas pontuais, o desenvolvimento desses predicados necessita estar enraizado na academia de forma a incentivar a busca da autonomia e das competências globais de um profissional da saúde.

Alguns monitores refletiram acerca do impacto deste programa em suas escolhas como futuros profissionais, reforçando a importância de conhecer e experimentar novos campos de conhecimento e trabalho, sendo fundamental para o protagonismo de suas escolhas, conforme destacado nos depoimentos:

Eu acho que em relação a minha faculdade pensei em atuar mesmo nessa área, quem sabe um dia quando eu me formar, mudei um pouco de direcionamento. Como pessoa me acrescentou muito mais conhecimento (E7).

Hoje eu até me vejo um pouco trabalhando em um posto [unidade de saúde], antes eu não gostava (E11).

Essas perspectivas demonstram que, além de possibilitar novos aprendizados, também proporcionam a reflexão de forma mais criteriosa sobre o seu futuro, visto que, muitas vezes, em uma formação hospitalocêntrica o contato com a atenção básica não é suficiente, de forma que estes estudantes nem sempre conseguem vislumbrar a atenção básica como uma área de atuação profissional.

Superar os moldes tradicionais de ensino e dar centralidade às metodologias questionadoras e instigadoras que favoreçam a reflexão acerca de novas possibilidades pode colaborar para que os alunos possam se tornar, verdadeiramente, protagonistas em suas escolhas15. Assim, cabe aos espaços de formação à promoção de um novo sujeito coletivo, definido por duas características básicas: empreendedorismo como desenvolvimento individual e coletivo, e a colaboração para assegurar a coesão social necessária para a vida em sociedade16.

De acordo com a pesquisa, ampliar as oportunidades do encontro dos estudantes com a realidade dos serviços contribui para a formação de um profissional diferenciado, não somente em seu campo profissional, mas no campo universal das redes de saúde, por meio de uma visão ampliada, da criatividade, da iniciativa e do pensamento crítico, de modo a se desenvolver como protagonistas da sua história.

Aprendizado em ato

O aprendizado em ato relaciona-se ao encontro do aluno com a realidade do SUS nos diferentes espaços da rede básica, onde o pensar e o fazer são praticados simultaneamente de forma a (des)construir e (re)construir sua visão sobre o SUS, colaborando de maneira profícua com o amadurecimento e protagonismo do estudante em sua formação. Tal premissa é expressa nas falas a seguir:

Muitas vezes a universidade, o curso enfim, não te abre tantas possibilidades de conhecer algumas coisas a mais da atenção básica e o PET abre muito essa parte de inserir a gente realmente nela [...] (E1).

Ela [preceptora] me mostrava mesmo a realidade, assim, a verdade. Me mostrava mesmo como era ali, eu até ficava chocada, meio assim. O que é isso!? Com isso fui amadurecendo (E5).

Observa-se que apesar das mudanças curriculares nos cursos da saúde, mesmo assim esses futuros profissionais percebem como escasso o contato com a atenção básica e julgam esse contato necessário para o amadurecimento crítico em relação às redes de saúde.

A inserção dos estudantes na realidade dos serviços de saúde possibilita um estranhamento positivo, podendo levá-los a uma reflexão crítica e ao amadurecimento do entendimento acerca do seu papel como futuro profissional.

Segundo os alunos para compreender os SUS é necessário mais do que se defrontar com os artigos da Constituição Federal ou sua lei orgânica, a real compreensão vem da vivência no palco onde ele acontece, ou seja, na rede de saúde, com seus trabalhadores, usuários e programas, como demonstrados a seguir:

[...] nessa vivência, de tu realmente se inserir na prática, foge daquele parâmetro. Têm todos os programas de gestão, gestão em saúde, gestão do SUS, que tu olhas e são muito legais e tu vês que são fechadinhos, mas no PET tu vê que isso realmente não acontece, não pelo menos desse jeito, cada lugar se organiza de alguma forma (E12).

Hoje eu entendo o SUS de outra forma. Porque tu escutas de um jeito, tem uma ideia teórica do SUS e aí tu vais ver na prática como é, com todas as facetas do SUS, pontos bons e pontos ruins (E1).

O cenário de aprendizagem constrói reflexões a partir do vivenciado, constituindo, assim, espaços que privilegiam a transformação e a consolidação da atenção à saúde marcada pelos valores do SUS. É o local onde também se expressam e se explicam os conflitos, dificuldades, estratégias e táticas desencadeadas para a ocupação de espaços da rede de cuidados17.

Pode-se, então, proferir que a prática fecunda à teoria, pois o SUS com toda a sua história, políticas, atores, ideias e ideais não pode ser compreendido somente no papel, o SUS necessita ser problematizado, ser vivido.

Ao se aproximar da realidade dos serviços de saúde o aluno leva consigo seus valores e crenças, conhecimentos prévios e sua experiência de vida, ele chega aos serviços com uma bagagem de pré-conceitos, porém a convivência com todos os atores envolvidos e as situações encontradas, os levam a gradualmente a (des)construir e (re)construir seus conceitos sobre a atenção básica, conforme o exposto a seguir:

Eu via também a diferença das pessoas que não tinham participado do PET para mim, que também tinha uma cabeça muito fechada ainda e até um certo preconceito com o SUS, que começamos a quebrar e a entender que a culpa não é de quem está na ali na ponta. Existem vários culpados, mas quase nunca é quem está na ponta, que tem toda uma questão política (E8).

No início da disciplina sempre falavam do SUS [...] e toda história assim, mas não sabemos bem como é que funciona na prática. [...] Ali no hospital é bem diferente, [...]. E aí conseguimos ver a realidade e conhecer outras coisas, porque infelizmente não temos essa oportunidade de ter outras experiências, e o PET nos proporciona isso (E5).

O mundo do trabalho é compreendido como uma escola, em que se pode dialogar com todos os outros que estão ali, tecendo redes de conversas coletivas entre os que habitam o cotidiano dos serviços e das equipes de saúde, explorando essa potência nos fazeres produtivos, como atos pedagógicos18.

Está na essência do ser humano o preconceito com o desconhecido, como uma criança que não come certos alimentos pela aparência, assim é no âmbito dos serviços de saúde, uma formação hospitalocêntrica e teórico-centrada, muitas vezes, não possibilita conhecer e compreender o SUS de forma autêntica. Pressupõe-se que a incorporação de docentes e estudantes envolvidos na produção de serviços em cenários reais, em todo o âmbito dos serviços de saúde pode beneficiar a mudança desse cenário.

Assim, evidencia-se que o PET-Gestão é mais que uma ferramenta utilizada para aproximar os alunos da rede de atenção, ele aproxima ideias, práticas, conhecimentos e os atores inseridos nos locais de cuidado, possibilitando a renovação dos conhecimentos sobre o SUS em cada um dos agentes envolvidos.

Quadrilátero da formação

O quadrilátero da formação é a representação de quatro eixos que devem estar integrados a fim de proporcionar a atenção integral em saúde e que estão, no cotidiano, em constante movimento, tornando cada vértice atravessado pelos demais, como numa mandala em movimento19. Ao versamos sobre ele, discutimos as cenas que envolvem usuários, gestores, profissionais da saúde e instituições de ensino, constituindo os atores que consolidam o SUS. Importante destacar que, na formação tradicional, cada conceito constitutivo desse quadrilátero, que aparece como achado na pesquisa empírica, mas que também se constitui em conceito da educação permanente em saúde, possui independência e sentido específico.

As discussões acerca do quadrilátero iniciaram com a perspectiva de que a qualidade da formação resulta da apreciação de critérios de relevância para o desenvolvimento tecnoprofissional, o ordenamento da rede de atenção e a alteridade com os usuários19. Os extratos de falas, a seguir, ilustram claramente o encontro da academia com os serviços:

Outras coisas que nós participamos foram as reuniões, [...], tudo que fazemos vamos tendo novas vivências. O mais importante foi essa nova visão que eu tive da gestão [...] são poucas as pessoas que tem no meu curso principalmente, tanto que eu sou um das únicas do meu curso [no PET] eu acho (E7).

Mas acho que no geral foi bom, porque eu conheci muita coisa. Depois eu até comentei que as vezes algum professor falava alguma coisa da atenção básica, das unidades do distrito e tal e eu sabia e todo mundo ficava ... Como assim, se não tivemos isso em aula? [...] Então é uma vivência a mais (E1).

[...] ela me deu algumas leituras, algumas leituras um pouco pesadas, assim, mas que no fim eu acabei usando até em trabalhos da faculdade, então foi legal fazer esse intercâmbio também PET e disciplinas (E1).

De acordo com as falas pode-se observar que o PET - Gestão oportuniza conhecimentos para além dos currículos dos cursos, propicia experiências inéditas e viabiliza o intercâmbio de ideias e valores.

O encontro dos estudantes com o cotidiano dos serviços traz recursos riquíssimos para o aprendizado do cuidado e da organização dos processos de trabalho e gestão17. Compreende-se que ao inserir os alunos na rede, não somente eles são provocados, como versa a terceira lei de Newton, da ação e reação, um objeto que exerce uma força sobre o outro objeto, este outro exerce uma força igual e contrária. Nesse caso, não são forças que se chocam, mas são conhecimentos, valores e ideias que são trocados, não somente entre os profissionais e alunos, mas incluem-se os docentes e o controle social.

Há de considerar-se que, muitas vezes, os profissionais da saúde exercem suas atividades por meio da lógica de produção e do cuidado mecânico, buscando atingir somente metas e indicadores. A chegada da academia aos serviços traz consigo alunos com novas ideias e ideais, que acabam revigorando a equipe de saúde. Esse fenômeno é apresentado nos trechos a seguir:

[...] acompanhei muito [...] ali na gerência para ter essa visualização de como é realmente ali e que muitas vezes não anda, não por falta de vontade dos profissionais, mas porque é muita demanda de trabalho (E12).

Agora eu estou [...] no centro especializado de feridas. Lá eu observo como é que é o trabalho dela, proponho modificações para a preceptora. O bom é que ela é bem aberta a mudanças (E2).

Ajudou a aprender [...] como trabalhar com uma multidisciplinaridade, não pensando só no que temos que fazer, mas tentando pensar no todo, para tentar atender o paciente de uma forma melhor. O PET ajudou muito nessa visão de coletividade, de não pensar: Eu tenho que fazer isso e ponto (E4).

Para esses monitores o encontro com os serviços de saúde e seus coabitantes possibilita a transformação do paradigma do modelo de assistência, em que somente o profissional de saúde é responsável pela qualidade da resposta assistencial.

Gradativamente, as novas políticas de formação vêm transformando os espaços de trabalho onde ainda se produz a atenção à saúde sob o modelo tecnoassistencial hegemônico centrado nos procedimentos, em espaços de cidadania, onde os profissionais do serviço e docente, usuário e o próprio estudante vão estabelecendo seus papéis sociais na confluência de seus saberes e modo de ser e ver o mundo17. A imersão dos estudantes nos locais de trabalho não favorece somente a construção desses futuros profissionais, mas também, qualifica-os como cidadãos, com habilidades e conhecimentos capazes de fazer saúde de forma compartilhada, propagando a produção da saúde de forma coletiva.

Ao refletirmos sobre o processo de trabalho e a qualidade da assistência durante a formação, frequentemente, deixamos de pensar a quem assistimos. Constantemente, são observados como indicadores de qualidade o volume de serviços prestados, as alterações nos padrões biológicos e a quantidade dos serviços tecnificados. O cuidado integral e de qualidade envolve a coletividade da assistência, tendo o usuário e seu protagonismo como foco central das ações de saúde. As falas, a seguir, expressam que os monitores em suas vivências na rede de saúde puderam fazer essas reflexões:

O controle social é algo bem importante, porque por mais que tu seja gestor tu tem sempre que perguntar para o controle social, porque é uma diretriz do SUS, o que é que o controle social aceita ou não e mostrar as possibilidades. Então, mesmo tu sendo gestor tu não és gestor de verdade, porque quem é gestor do SUS é o controle social (E9).

Eu acho que abriu a minha mente, [...] eu tinha a cabeça, muito fechada antes ir para o PET. Eu acho que eu não tinha uma visão tão ampliada das coisas, inclusive essa coisa de ver as pessoas, digamos lidar com as pessoas conforme a necessidades delas, foi uma coisa (algo) que ela me ensinou muito (E8).

Essas falas evidenciam que inserir esses futuros profissionais nos cenários onde ocorre a produção de cuidado, possibilita a percepção do controle social como parte do processo de produção da saúde, assegurando o cuidado integral por meio da compreensão das demandas e necessidades das pessoas, grupos e comunidades em uma nova visão de fazer saúde. A partir disso pensa-se em uma formação que não somente conceba profissionais para os postos de trabalho, mas com a convicção de que o trabalho em saúde é um trabalho de escuta, em que a interação entre profissional de saúde e usuário é determinante da qualidade da resposta assistencial19.

No atual cenário onde a gestão em saúde não é mais atrelada somente à política, mas sim, é compartilhada por todos os atores que coabitam os serviços, se torna extremamente relevante que os estudantes tenham essa percepção da gestão, envolvendo o controle social e de como ele interfere no processo de atenção à saúde.

Em suma, o encontro e as discussões entre esses quatro eixos possibilita uma busca por uma qualificação e fortalecimento das diretrizes do SUS, tendo como foco central a integralidade em toda a rede de serviços de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conformação das redes de atenção à saúde vem se estruturando de forma cada vez mais complexa, exigindo a qualificação profissional tanto nos campos de trabalho quanto na formação para o trabalho.

Este estudo revelou que o PET - Gestão influenciou para além da formação acadêmica, interferindo de maneira positiva no desenvolvimento pessoal e profissional dos monitores do programa, apontando a relevância da estruturação de uma formação que contemple as redes de atenção à saúde em sua totalidade como um campo integrado ao ensino, propiciando diferentes formas de desenvolvimento para os estudantes.

Percebeu-se que os monitores do programa compreendem a rede básica como um campo de aprendizado libertador, em que os estudantes sentiram-se a vontade para questionar, dialogar e intervir nos diferentes locais e com os diferentes profissionais nas situações cotidianas dos serviços, possibilitando a experimentação ativa de novos campos de conhecimento, de modo participativo, viabilizando o intercâmbio de ideias e valores, de forma a fortalecer o protagonismo de suas escolhas tanto no âmbito profissional, como no acadêmico e pessoal.

Constatou-se que a inserção destes estudantes nos campos de atuação favorece um aprendizado problematizado, podendo possibilitar a formação de futuros profissionais mais reflexivos proativos, autônomos e com um olhar mais amplo sobre as redes de saúde, percebendo a importância da multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e do trabalho coletivo como definidores da atenção integral.

Sendo assim, se desvela a necessidade da continuidade de ações que fortaleçam o encontro da academia com os cenários onde se dá o desenvolvimento do cuidado, a produção de conhecimentos e onde se encontram todos os atores envolvidos no processo de produção da saúde. Tal encontro pode privilegiar uma gestão compartilhada, tendo o usuário e seu protagonismo como foco central nas ações de cuidado.

Para concluir, este estudo não esgota as discussões acerca do tema, nem tampouco, define caminhos a serem percorridos para alcançar as transformações necessárias na formação em saúde, mas sim, aponta que os debates e as mudanças já iniciaram e indicam benefícios na continuidade deste movimento, privilegiando a formação de profissionais que fortaleçam e auxiliem a consolidação do SUS e suas diretrizes.

REFERÊNCIAS

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