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CAPES

Volume 10, Número 4, Out/Dez - 2006

ENSAIO

 

Uma viagem na história da enfermagem
psiquiátrica no início do século XX

 

A travel in the psychiatric nursing history
in the beginning of the 20th century

 

Un viaje en la historia de la enfermería
psiquiátrica en el início del siglo XX

 

 

Nadja Cristiane Lappann Botti

Enfermeira, Psicóloga, Doutora em Enfermagem Psiquiátrica EERP/USP. Prof.ª Adjunta III PUC Minas / Betim.

 

 


RESUMO

Este trabalho teve como objetivo realizar uma análise histórica sobre as práticas e saberes da Enfermagem Psiquiátrica Brasileira na primeira metade do século XX. Práticas e saberes do paradigma asilar pautado na tutela, segregação e exclusão social; em função de se acreditar que o conhecimento da história da Enfermagem e da Psiquiatria é fundamental para a construção de uma nova prática profissional.

Palavras-chave: História. Enfermagem Psiquiátrica. Psiquiatria. Tratamento.


ABSTRACT

The objective of the present study was to develop a historical analysis about the practice and known of the Brazilian Psychiatric Nursing in the first half of the 20th Century. Practices and knows of the internment paradigm ruled in the guardian, segregation and social exclusion; based in the belief that the knowledge of the history of the Nursing and of the Psychiatry is basic for the construction of a new professional practice.

Keywords: History. Psychiatric Nursing. Psychiatry. Treatment.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo desarrollar un análisis histórico sobre las prácticas y conocimientos de la Enfermería Psiquiátrica Brasileña en la primera mitad del siglo XX. Las prácticas y conocimientos del paradigma acoger pautado en la tutela, segregación y exclusión social; en función de creerlo que el conocimiento de la historia de la Enfermería y de la Psiquiatría es básico para la construcción de una nueva práctica profesional.

Palabras clave: Historia. Enfermería Psiquiátrica. Psiquiatría. Tratamiento.


 

 

INTRODUÇÃO

Este ensaio foi construído a partir de uma metáfora sobre o cuidar e a loucura, onde se coloca que tratar de psicóticos é aceitar um convite para uma viagem onde não há como ter roteiro preestabelecido e onde aquele que se oferece a cuidar tem que ter um gosto inusitado e uma certa paixão pela aventura1. A partir dessa construção metafórica, imediatamente o imaginário começa a delinear cenas, personagens e cenários. Inegavelmente surgem inúmeras possibilidades de viagens. Então, uma curiosidade se insinua: que bagagem a Enfermagem levaria para acompanhar um paciente psiquiátrico numa hipotética viagem ao século passado?

Este trabalho através de um ensaio tem como objetivo relatar, de uma outra forma, a prática da Enfermagem no campo da Assistência Psiquiátrica no início do século XX, em especial na primeira metade do século. A metáfora foi eleita por possibilitar a construção de outros significados. O termo "viagem" apresenta um simbolismo particularmente rico, entre outros significados, exprime a busca da verdade, paz, imortalidade, da procura, da descoberta, do desejo de mudança interior ou uma necessidade de experiências novas. A viagem pode ter um sentido que vai além de simples deslocamento físico, indicando, assim, uma insatisfação que leva à busca e à descoberta de novos horizontes2.

Essa viagem ocorre nos primórdios do século XX, levando em consideração os significados da loucura e o sentido do tratamento em tal época, sem definir as especificidades de cada década, englobamos os diferentes momentos da Enfermagem Psiquiátrica no Brasil. No contexto, o paradigma asilar que, entre as características mais específicas, enunciava a diferença inscrita na loucura, a exclusão, a estruturação do saber psiquiátrico, a possibilidade da cura e a virtualidade da higiene3:35. E nesse contexto, entre as motivações para a Enfermagem escolher o cuidado ao doente mental como campo de atividade, encontrava-se a identificação com o trabalho em psiquiatria, a influência de familiares e de professores e a inclinação pelos assuntos relacionados com a psicologia e a psiquiatria 4.

Faz-se o cenário com asilamento, exclusão, segregação e tratamento moral. Nesta cena, a Enfermagem teria um papel garantido, pois Franco da Rocha, um especialista da época, afirmava que os ingredientes básicos do tratamento moral são um bom enfermeiro, um bom cozinheiro e uma bela vista3:37. Assim, a Enfermagem é convocada a compor a cena e montar o figurino; e nesse momento se pergunta: que bagagem levaria para acompanhar um alienado para ser internado no Asilo Colônia de Barbacena?

Em geral, numa viagem levamos na bagagem o que parece indispensável, como objeto material, roupas, sapatos, acessórios, mas, para além deste sentido, pode também representar psicologicamente elementos subjetivos como: possibilidades, conhecimentos, capacidades, hábitos, instintos, ligações e proteções. Por esse viés, abandonar a bagagem significaria uma desconstrução interior e um profundo sentimento de libertação2. Significado legítimo do movimento da Reforma Psiquiátrica e da desconstrução da lógica manicomial.

Essa viagem poderia ter como ponto de partida qualquer lugar, mas a chegada teria como destino o Asilo Colônia de Barbacena. Assim, num tempo remoto, poderíamos iniciar uma viagem de trem pelos trilhos da Estrada de Ferro da Central do Brasil, que nas primeiras décadas do século passado, ligava Minas Gerais ao Rio de Janeiro e São Paulo. O Sanatório de Barbacena tinha para a época alguns requintes como uma estação ferroviária exclusiva e um telefone5. Fatos curiosos, que no mínimo nos lembra a associar a uma outra viagem, que também tem como personagem a "loucura" e como cenário o estigma e a segregação, a viagem de Maria de la Luz Cervantes narrada no emocionante conto Só vim telefonar6.

Sendo o trem o meio de transporte, nos vagões com destino à estação do sanatório, possivelmente, estaria o alienado, deficiente físico, epiléptico, alcoólatra, marginal, sifilítico, deserdado pela família, mãe solteira, entre outros considerados "inaptos" para a vida em sociedade, enfim um "trem de doido", expressão originária desse contexto, e hoje comum em Minas Gerais. Em geral vinham de toda parte do estado e outros estados, fazendo com que a cidade ficasse conhecida como a "Cidade dos Loucos" pois às dezenas eram semanalmente abandonados em Barbacena; último estágio público da loucura em Minas Gerais, "uma viagem sem retorno", na verdade, a estação do sanatório "era o fim da linha"7.

No trem, no interior dos vagões, respeitavam-se algumas divisões fundamentais: homens, mulheres, curáveis, incuráveis, calmos, agitados, agudos, crônicos, pois tinha duas espécies de doentes mentais (...) as doentes crônicas, que eram doentes mansas, que não faziam nada (...) e as doentes furiosas, agitadas8:312.

Acompanhamos um "doente" que caracteristicamente na época se apresentaria com mínimas variações9 uniforme azul, correias, cintos, manchões, pegemas (algemas de pés), embornal (sacola com alça, que se levava pendida do ombro, que, não por acaso, foi eleito pelos alienistas para uso dos doentes quando reconhecemos o significado de embornal como um saco que se prende em torno à boca de animais domésticos para lhes dar de comer) levando canecos e pratos de lata.

Para compor a mala, partimos da história sobre as práticas da Enfermagem desenvolvida nos hospitais psiquiátricos. No Brasil, no início do século, teoricamente competia aos alienistas a prescrição dos meios terapêuticos e a delegação da execução destes ao pessoal de Enfermagem, na realidade eram os últimos que definiam em que momento e quais procedimentos deveriam ser utilizados para conter as manifestações de agitação dos internos8.

A Enfermagem, nesse contexto, apresentava aptidões que supostamente um profissional da área deveria possuir para trabalhar com doentes mentais: saber ouvir e compreender o outro 4:315. E desenvolvia uma prática profissional caracterizada principalmente pela vigilância, observação e controle do comportamento dos pacientes - através das medidas de contenção física - bem como pela execução de cuidados de enfermagem complementares à clínica médica (controle de sinais vitais, higiene, alimentação).

O repouso seria a primeira medida terapêutica a ser tomada clinoterapia - o doente deveria permanecer no leito para reduzir a excitação cerebral e renovar o sistema nervoso3:37. No caso dos doentes mais agitados, a clinoterapia pode ser garantida com a utilização de amarras. Nesse sentido, a Enfermagem levaria a camisa de força, as faixas para contenção e os lençóis, para fazer o "invólucro úmido" (técnica que consistia em manter o paciente enrolado em lençóis molhados por algumas horas), pois:

Tinha uns que arrebentavam de tanto que batiam nas paredes então tinha que pôr camisa de força e manguito (...) se amarrava o doente com as mãos dele para trás, pois os doentes daquela época eram fortes e agressivos (...) a contenção mecânica era com uma faixa, como se enfaixasse uma pessoa (...) então o indivíduo ficava completamente imóvel, não podia se mexer durante oito horas8:319-320.

Entre os cuidados "benevolentes" estava indicado:

Três a quatro litros de leite, desintoxicantes por excelência, que deveriam ser consumidos diariamente no caso dos delírios agudos com agitação e febre, incluídos aí os delírios alcoólicos. Por conterem substâncias excitantes, o álcool, o café e o chá preto deveriam ser evitados3:38.

Em casos de agitação psicomotora e comportamento "inadequado", a hidroterapia seria o método escolhido pelos efeitos de sedação e contenção que os alienistas atribuíam a esse tratamento; assim, seria necessário levar termômetro, banheira, bacia e toalha, porque:

Para uma paciente agitadíssima tinha o banho de hora (...) onde os doentes eram colocados na banheira de água bem morna e ficavam ali tempo até se acalmar (...) tinha o termômetro para ir vendo a temperatura da água (...) o calmante dos doentes era um pano bem cheio d'água fria na cabeça (...) o banho de imersão, era feito numa temperatura de 37 ou 37,5 °c onde se colocava o paciente e dois enfermeiros seguravam em média uma hora e meia, duas horas, sempre observando a temperatura8:301-314.

Mas sem reducionismo técnico, a hidroterapia ou balneoterapia, não era tão simples assim, pois havia uma diversidade de procedimentos técnicos e indicação, o banho quente tinha efeitos analgésicos, antiflogísticos, sedativos e hipnóticos (...) o banho frio estava indicado na neurastenia, na hipocondria e nas condições anêmicas que acompanham a loucura3:38.

Mas haviam ainda, os instrumentos necessários para os procedimentos das "terapias orgânicas" (termo utilizado por Kaplan, que inclui os psicofármacos, as psicocirurgias e convulsoterapias), entre elas

A malarioterapia onde se injetava malária no paciente (...) para isso tirava o sangue de um doente que tivesse a malária e injetava em outro. Era uma espécie de transfusão de sangue (...) então um dia ou dois, começava a febre. Tinha que conservar o paciente com 80 horas de febre acima de 38°c (...) ao cabo de uma semana deixava ele descansar um pouco para recuperar as 80 horas (...) depois entrava com uma série de bismuto (...) tinha que aspirar com seringa de vidro, usava uma agulha para aspirar e outra para injetar, porque se fizesse com a mesma agulha queimava todo o braço do paciente8:322.

A eletropirexia era um forno onde se colocava o paciente lá dentro e ficava só a cabeça para fora (...) com a temperatura graduada em 38° c durante 6, 7, 8 horas8:323.

Com a insulina se fazia o choque úmido onde se injetava uma dose e ia elevando até chegar ao coma. Quando a doente estava em coma, que não tinha reflexos, ainda deixava alguns minutos. Depois era interrompido o coma, através de 20 ml de glicose na veia8:325-326.

A medicação que se fazia injetável, endovenosa, era o Sonifen, mas dava uma trombose, então muitos doentes com trombose tinham que tratar na estufa. Bastava-se duas estufas, uma de cada lado do braço para poder desmanchar a trombose8:326.

Uma injeção de Sulfizina (óleo canforado) que deixava a doente com hipertermia e acalmava assim era indicado na agitação (...) na depressão se utilizava o cardiazol (...) e nas esquizofrenias a insulinoterapia8:326.

Como havia uma variedade de medicações, seria necessário uma farmácia para levar:

Os tonificantes (ferro, cafeína, kola, sais de cobre, soro artificial, quinina, arsênico, glícero-fosfatos), os brometos, o ópio via oral puro em pó ou sob a forma de tintura (láudano de Sydenham) ou diluído como extrato aquoso para injeção subcutânea; o cloral e o paraldeído, a hioscina, a canabis, estriquinina3:38.

Assim precisaria de injeção de vidro, agulha e algodão. É importante lembrar da eletroconvulsoterapia, caso surgisse nos vagões doentes agitados, negativista, e principalmente, para garantir, a essa altura da viagem, uma certa economia no trabalho da Enfermagem, pois:

O ECT em determinados casos funcionava como no paciente que estava negativista, não queria se alimentar, não queria ver a família (...) também para o esquizofrênico, agressivo não existia tratamento melhor que o eletrochoque8:327-328.

Com o aparelho do eletrochoque debaixo do braço botava 80 V, menos de 80 V não desencadeia crise numa pessoa (...) tinha uma sacolinha de pano para pôr na boca para não morder a língua e tinha que segurar o queixo das pacientes senão, naquela convulsão, caíam o queixo8:333-336.

E para mantê-los ocupados durante a viagem, pois afirma-se que a ocupação é muito importante para o doente mental, como nos lembra Franco da Rocha. A ociosidade é o que há de mais subversivo tanto para o espírito do louco, como para o normal10. Assim, construiríamos um vagão ergoterápico, com oficina mecânica, marcenaria, padaria, sapataria e rouparia:

A praxiterapia para as (`pacientes') femininas era na parte de costura, bordado (...) as doentes costuravam, pregavam botão, botavam elásticos, emendavam a roupa e bordavam. (...) Para os homens uma gaita, um chocalho, pandeiro e um violão, aí formava a bandinha8:338-340.

As psicocirurgias garantem outra forma de intervenção terapêutica indicada para o tratamento da agressividade. Portanto, seria necessário levar na mala os instrumentais cirúrgicos e a anestesia.

Na lobotomia se fazia anestesia com Tiopental. Na lobotomia frontal o doente ficava calmo e em parte regredia, ficava meio abobalhado. Na lobotomia da região parietal se abria e depois, com o bisturi elétrico, isolava uma parte do cérebro (...) isso acalmava o paciente e a agressividade (...) geralmente levava uma hora, uma hora e meia, duas horas, duas horas e meias essa cirurgia8:348.

Como não teríamos de levar quarto-forte, a cela, seria importante construí-lo dentro dos vagões. Seriam vagões-fortes, vagões-cela?

Enfim, final da viagem e com esta mala a Enfermagem teria elementos suficientes para manter a ordem, o controle e a disciplina, prevenir distúrbios que a ameaçassem e implantar medidas para a contenção da agressividade, mas que na verdade são instrumentos de sujeição do paciente, através do domínio do indivíduo pelo uso extremado da violência imposta.

Uma mala pesada, insuportavelmente pesada de objetos e recursos empregados na lógica da exclusão, bagagem que preconiza a diferença como negatividade, condenando-os ao aviltamento que devemos abandonar e substituir por novas bagagens, novos saberes e fazeres.

Terminamos o ensaio com um outro convite, o de hoje seguir indefinidamente imaginando novas viagens, com cenários que exteriorizam e habitam a cidade (contratualidade), com o trânsito da loucura circulando em outros espaços (solidários), com outros transportes (humanos), frente a uma nova bagagem (ética e estética), em direção a novas estações (cidadão e sujeitos da viagem) e com o desejo de contribuir para a formação de profissionais enfermeiros com compromisso social, visão ética e humanística, críticos e reflexivos e sensibilizados com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

 

Referências

1. Ferrari S. A ancoragem no caminho da psicose: um estudo clínico do uso de atividades e sua compreensão no tratamento de psicóticos. Rev Centro Estudos Terapia Ocupacional 1997;2(2):9-15.

2. Chevalier J, Gheerbrant A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 14ª ed. Rio de Janeiro(RJ): J. Olympio; 1999.

3. Pereira LMF. Os primeiros sessenta anos da terapêutica psiquiátrica no estado de São Paulo. In: Antunes EH, Barbosa LHS, Pereira LMF. Psiquiatria, loucura e arte: fragmentos da história brasileira. São Paul(SP): EDUSP; 2002.

4. Kirschbaum DIR, Cabral MAA. A escolha pelo trabalho em psiquiatria como vocação nas décadas de 30 a 70: relatos orais de enfermeiras. Esc Anna Nery Rev de Enferm 2000 dez;4(3):311-20.

5. Magro Filho JB. A tradição da loucura: Minas Gerais - 1870/1964. Belo Horizonte(MG): Cooperativa Médica; 1992.

6. Marques GG. Doze contos peregrinos. Tradução de Eric Nepomuceno. 8ª ed. Rio de Janeiro(RJ): Record; 1995.

7. Firmino H. Nos porões da loucura. Rio de Janeiro (RJ): CODECRI; 1982.

8. Kirschbaum DIR. Análise histórica das práticas de enfermagem no campo da assistência psiquiátrica no Brasil, no período compreendido entre as décadas de 20 e 50. [tese de doutorado]. Campinas(SP): Faculdade de Ciências Médicas/ UEC; 1994.

9. Moretzsomn J. História da psiquiatria mineira. Belo Horizonte(MG): Cooperativa Médica; 1989.

10. Rocha F. Hospício e colônias de Juquery: vinte anos de assistência aos alienados. São Paulo(SP): Typ. Brasil; 1912.

 

 

Recebido em 10/10/2006
Reapresentado em 20/11/2006
Aprovado em 29/11/2006

 

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