Volume 3, Número 1, Jan/Abr - 1999
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O ponto de partida de minha exposição é a afirmativa genérica de que, nas profissões femininas (ou feminilizadas), nota-se uma aspiração intensa pelo reconhecimento social e pela criação de novas identidades, o que caracteriza um movimento, no qual as mulheres tentam, por via da qualificação, se desembaraçar da idéia de vocação. E aí, o caso das enfermeiras é considerado exemplar (NOTAT, 1995, p. 158). Nessa afirmativa, de caráter geral, particularizamos a luta histórica das enfermeiras brasileiras por construir um discurso próprio, ou seja, a luta pelo reconhecimento de sua competência, da eficácia de seu trabalho e da singularidade de seu propósito (LOPES, 1996, p.95), enfim, pela produção e imposição de uma visão de mundo legítima (BOURDIEU, 1989, p. 140),
Neste sentido, uma recuperação, ainda que parcial, das condições de produção dos primeiros discursos sobre a enfermagem no Brasil, pode evidenciar como a luta das enfermeiras, por uma posição mais favorável na sociedade se entrelaça com as mudanças nas relações de gênero e com a (re)classificação dos saberes, no interior da dinâmica histórico-social, posto que as palavras e as expressões aceitas traduzem, num dado momento, o estado das forças simbólicas em jogo, entre grupos antagônicos (SINGLY, 1995,p.H7).
Temos, então, por um lado, que as supostas diferenças entre os sexos, ao estruturarem um conjunto objetivo de referências, não só estabelecem um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos, mas também estruturam (e reestruturam) "a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social", constituindo-se assim na forma primária das relações de poder (SCOTT, 1989, p. 14, 16). E, por outro lado, temos que essas mulheres, ao se inserirem em diferentes grupos de interesse que, por sua vez, lutam entre si para impor sua própria visão de mundo, muitas vezes se colocam em posições antagônicas, ainda que mantendo certos ideais em comum.
O ponto de chegada desta exposição é o significado essencial que pode ter o esforço de reconsideração da curta história da enfermagem brasileira, ou seja, sua função social.
OS DISCURSOS MASCULINOS TRADICIONAIS
Durante o processo de institucionalização da enfermagem no Ocidente, o aproveitamento ideológico do cuidado feminino aos fracos e incapacitados se deu pela construção da mística da enfermagem, a partir da assimilação de discursos masculinos consagrados pela tradição, entre os quais, os oriundos das corporações religiosas, militares e médicas, concorrentes entre si, mas nem sempre adversárias.
O discurso religioso cristão traz o apelo da verdade revelada e das recompensas divinas. No caso da Igreja Católica Romana, apresenta ela ainda a eficácia de sua organização e o ideal de comunhão universal; nela, o fervor religioso é estimulado pela devoção aos santos, como figuras exemplares, e pela liturgia, que envolve os sentidos e impressiona os espíritos. A corporação funciona de acordo com uma rígida hierarquia eclesiástica e uma disciplina sublimada. A tradição católica ordena apenas homens celibatários para o corpo sacerdotal, o qual detém o monopólio do discurso espiritual, que define "os arquétipos da santidade, as funções eclesiais, as formas de espiritualidade e as práticas de devoção convenientes a cada um dos sexos" (HÉRITIER-AUGÉ, 1995, p.107). No entanto, tais prescrições foram utilizadas por mulheres de todas as épocas para alcançar seus próprios desígnios.
Na atuação das irmãs de caridade, a violência simbólica se exerce de forma uma tanto velada, favorecida que é por seus votos de pobreza, castidade e obediência. Assim, as ações das religiosas nos hospitais se pautaram pelo silêncio, e não só como disciplina espiritual, e como manifestação de humildade e obediência, mas também como estratégia evasiva de poder, reforçada por sua presença contínua em todos os espaços institucionais (Barreira in PADILHA, 1998, p.1). Neste modelo, o cuidado é feminino e relacionado à salvação das almas, o hospital é o local de trabalho, segundo uma divisão funcional das atividades, mas é também local de morada, o que enseja uma disponibilidade permanente para o serviço.
Esse modelo católico foi retomado na Inglaterra protestante e capitalista, por Florence Nightingale, que incorporou algumas de suas bases ao seu próprio discurso e, mesmo levando em conta o valor econômico da vida e da morte (Barreira in PADILHA, 1998, p. 11), não deixava de recomendar que toda enfermeira fosse, entre outras coisas, uma mulher religiosa e devotada.
No Brasil, na metade do século 19(1850), com a proibição do tráfico dos escravos e a violenta epidemia de febre amarela que atingiu a corte, vieram as irmãs de caridade para a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (1852), como parte do projeto modernizador e civilizador do Segundo Império. Essa intervenção das irmãs de caridade ocorreu no momento em que já se iniciava o projeto de hegemonia da corporação médica, que tratava de construir um novo discurso, não só laico e civil mas racionalista e cientificista (Barreira, in PADILHA, 1998, p. 10).
Muitas mulheres, sob a forma de ajuda aos fracos e desvalidos, derivaram sua vocação religiosa para a prática da caridade, como sucedâneo ao hábito de freira. E há a benemerência laica, ainda praticada pelas mulheres, as quais, inclusive por falta de clareza do valor de seu trabalho, mais facilmente concordam em prestar serviços subalternos e gratuitos (BOURDIEU, 1996, p. 194-195). O apelo espiritual do discurso religioso traz como exemplo perfeito a figura de Maria que, em sua ambigüidade de virgem e mãe, serve de modelo a solteiras e casadas e é também objeto da veneração masculina (NIMO & BARREIRA, 1997, p.3).
O discurso militar traz o apelo do amor à pátria e a crença absoluta no valor da corporação, fundamentos da construção do "espírito militar". As forças armadas detêm o monopólio do uso legítimo e legal da violência, justificado no conceito de honra, como valor supremo, para a defesa da nação, até com o sacrifício da própria vida. A base de sua organização é a ordem, manifestada sob a forma da hierarquia e da disciplina. A mística do cumprimento do dever é reforçada pelo culto aos heróis, pelos símbolos, pelos rituais, bem como por um sistema de promoções e sanções. Sua autoridade se explicita por meio de uma "cadeia de comando-obediência", que determina os deveres e obrigações inerentes às diferentes posições que, agrupadas em "círculos hierárquicos", formam uma rígida pirâmide, praticamente impenetrável a qualquer autoridade não militar. A disciplina é ostensiva e reforçada pela padronização das normas, pela postura corporal rígida, pelo exercício contínuo de gestos nítidos e sincronizados; e a hierarquia é codificada por meio de uniformes distintivos de cada força, arma e patente (LEIRNER, 1997, p.19,68-69,102-103). O discurso patriótico foi apropriado pelas mulheres, em diferentes tempos e lugares, como argumento irrecusável à sua aparição no mundo público. Neste modelo, a partir de meados do século XIX, o cuidado passa a se feminilizar, sob uma orientação religiosa ou laica, mas pautado por um discurso masculino, normativo e sob a autoridade militar.
As guerras foram importantes vetores da profissionalização da enfermagem no Ocidente. Só depois de vencer uma formidável luta simbólica contra o poder masculino, duplamente concentrado na figura do médico militar e tornando-se heroína da guerra, Florence Nigtingale conseguiu ganhar prestígio bastante e o poder necessário para fundar sua escola de enfermagem.
O discurso de Florence foi precocemente difundido para os Estados Unidos, no rastro da guerra civil norte/sul (1861-1865), que evidenciou deforma dramática a necessidade da organização de serviços de saúde. (SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p.41). Ao contrário, poucos anos depois, quando o Brasil se empenhou na Guerra do Paraguai ( 1864-1870) e o Hospital Real de Guarnição da Corte teve seus enfermeiros transferidos para os locais de campanha, foi solicitada (em 1868) a intervenção das irmãs de caridade naquele hospital, o que reforçou a hegemonia do modelo religioso-feminino de enfermagem (PASSOS, 1998, p.54).
Nessa Guerra, como enfermeira voluntária, destaca-se a figura de Anna Nery (viúva e católica), pertencente a família de oficiais, estando seu irmão e três filhos engajados no exército imperial. Por sua dedicação aos feridos e por sua colaboração com as irmãs vicentinas, nos hospitais de campanha, recebeu os cognomes de "mãe dos brasileiros" e de "grande irmã de caridade leiga". Talvez por essas identificações, Anna Nery, ao contrário de Florence, ao regressar à pátria, tenha mantido uma discreta postura, face à notoriedade por ela alcançada na guerra. Mas, de todos os modos, Anna Nery foi transformada no mito nativo equivalente ao mito universal de Florence Nightingale, sua contemporânea (ROSSI, 1997, p.44).
O discurso médico tradicional, de caráter altruísta, defende o exercício liberal da medicina, definindo-a como arte/ dom e como sacerdocio e dignificando a figura do médico com atributos relativos à moralidade, ao desinteresse financeiro, à abnegação, ao heroísmo e ao sacrifício; a prática médica reveste-se de caráter artesanal e tem como cenário o consultório ou a residência do cliente, baseando-se nas habilidades do médico quanto à anamnese, ao exame físico, ao tirocínio clínico, à intuição e à simpatia; a relação médico-paciente, autoritária e afetiva, tem a finalidade de curar, aliviar e consolar os males de cada um e de todos os membros da família (PEREIRA NETO, 1997, p. 59-67). Os cuidados eram realizados pelo próprio médico, pelas mulheres da família, agregadas e criadas domésticas.
No entanto, até a 1ª Guerra, no Brasil, a enfermagem era uma ocupação a que se dedicavam mulheres de diversas condições sociais, as quais determinavam sua posição hierárquica e a natureza de suas atividades: religiosas católicas, enfermeiras diplomadas estrangeiras, pessoal treinado na Escola Alfredo Pinto e nas escolas e cursos da Cruz Vermelha, visitadoras preparadas por médicos sanitaristas, leigas de pouca instrução e ex-escravas e seus descendentes (SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p.94; SANTOS, 1998, p.42-43; SENA, 1998, p.12).
OS NOVOS DISCURSOS MÉDICOS NO BRASIL, NA DÉCADA DE 20
As circunstâncias favoráveis a uma reforma sanitária ensejaram a criação de uma enfermagem de alto padrão no país, por iniciativa do cientista e sanitarista Carlos Chagas, no interior do aparelho de estado (BARREIRA, 1998 p.1). Diante da iminência dessa reforma, a corporação médica se acautela, como se pode verificar pela realização do Congresso dos Práticos, em 1922, no Rio de Janeiro, com a finalidade de discutir o ensino e o exercício da medicina, em um contexto de mudança do mercado de trabalho médico (PEREIRA NETO, 1997, p. 43,146-148 e 152).
Neste Congresso, surgem novos discursos, fundados no humanismo e na técnica, nos quais o saber médico é apresentado como esotérico e inatingível, e que reivindicam para a medicina o duplo status de ciência e de arte, o qual justifica a intervenção dos médicos sobre os corpos e a prescrição das ações e dos comportamentos adequados à mulher e à enfermeira. Nestes modelos, o cuidado é feminino, mas pautado por um discurso masculino, de teor vocacional, normativo e de caráter legal, que se produz mediante ordens escritas, e que prega a obediência do doente e das pessoas que dele cuidam, em nome da cura.
Essas duas novas ordens de discurso, que se contrapõem ao discurso médico tradicional, apresentam certos pontos em comum, mas se afastam em seus propósitos:
O discurso tecnicista apresenta o conhecimento médico como saber complexo e sistematizado, mas aplicável a demandas concretas. Valoriza a racionalidade técnica e científica, a especialização, a precisão do diagnóstico e do tratamento e o treinamento metódico e prolongado do médico. Seu cenário preferencial é o hospital, no qual atuariam os médicos especialistas e seus auxiliares, como o farmacêutico e a enfermeira (PEREIRA NETO, 1997, p. 6778). Neste modelo, a enfermeira seria preparada para amplificar a atuação do médico, segundo sua especialidade, mas deveria renunciar à performance e imitar as qualidades morais do discurso altruísta.
Os valores simbólicos e vocacionais da profissão de enfermeira constituíam um exemplo da concepção de trabalho feminino baseada em um sistema de qualidades pessoais, e não de qualificações (LOPES, 1996, p.57). Esse discurso (ambiguamente altruísta-tecnicista) viria a ser inculcado pelos médicos às alunas de enfermagem, como reiterou um certo paraninfo: "recebendo a touca, tornai-a como um símbolo, quer na alvura, quer na sua significação, pois ser enfermeira (...) é pertencer a um núcleo que, na desordem deste mundo, procura apenas, silenciosamente, fazer o bem (...) vossa ação será nas salas dos hospitais, na cabeceira dos que padecem, no contato dos instrumentos cirúrgicos, entre alvas salas, onde sacerdotes (médicos) realizam milagres, ajudados por Deus ...". Deste modo, a participação da enfermeira se fazia anonimamente; a possibilidade de construir uma reputação profissional dependeria da oportunidade de tornar-se o "braço direito" de algum médico ilustre.
O discurso higienista, fundado no sanitarismo internacional, tinha sua singularidade no apelo ao bem comum e no sentido coletivo de sua prática: o saneamento do país e a diminuição da pobreza se fariam em nome do progresso, por meio da educação higiênica, do combate às doenças e do tratamento dos doentes, tornando o indivíduo apto para o trabalho. Este discurso apresentava variantes, que davam ênfase ou à normatização de hábitos e costumes ou à prevenção das doenças, ou ainda ao aperfeiçoamento da raça (PEREIRA NETO, 1997, p. 78-88). Este discurso médico muitas vezes se apropriou do discurso militar, no que se refere ao planejamento de suas ações, à organização de sua estrutura e ao funcionamento de seus programas. O DNSP liderava o discurso higienista, que buscava o prestígio científico e tentava evitar o debate político. No entanto, como a reforma Carlos Chagas se fez com a cooperação da Fundação Rockfeller e tinha como centro difusor de idéias a Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins (Baltimore), recebia críticas de cunho nacionalista, muitas das quais tinham como alvo a escola de enfermeiras ou o serviço de enfermeiras de saúde pública.
Segundo o DNSP, o papel da enfermeira de saúde pública seria o de mediadora, encaminhando "os médicos para os doentes e os doentes para os médicos" (FONTENELLE, 1941,p.9-10), e ainda exercendo funções de inspetor sanitário, de educadora, de enfermeira de cabeceira e de agente social (BARREIRA, 1997, p. 162-3). Neste modelo, o cuidado é feminino e profissional, mas enquadrado pelo discurso do sanitarismo internacional e inspirado na figura idealizada da mulher, fundada na abnegação, na devoção ao serviço, no cumprimento estrito das ordens médicas e na colaboração com as autoridades constituídas.
OS DISCURSOS DOS ENFERMEIRAS
O SOTAQUE NORTE-AMERICANO
O discurso das enfermeiras americanas encarnava a mística da Fundação Rockfeller, com sua ética religiosa de trabalho e temperança, sua organização paramilitar e seu apelo à amizade entre Brasil e Estados Unidos. Seus fundamentos eram a superioridade da civilização americana, o movimento sanitário internacional e o hospital moderno, facilitadores da ampliação de sua área de influência. O veículo de difusão desse modelo anglo-americano de enfermagem era a Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil (Missão Parsons), cujas dirigentes eram símbolos da mulher e da enfermeira americanas, das quais elas constituíam o modelo e as porta-vozes autorizadas. O projeto da Missão centrava-se no treinamento técnico para o exercício da arte da enfermagem (ALMEIDA & ROCHA, 1986, p.29-35 e 52-53). A formação do habitus profissional incluía conhecimentos introdutórios de ciências afins, a sistematização de técnicas de enfermagem e os padrões de conduta profissional. O material didático utilizado era composto principalmente de textos americanos traduzidos (SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p. 154). Neste modelo, o cuidado é feminino e profissional, enquadrado por um discurso político, masculino, e de fundo etnocêntrico. A mística da enfermagem se reveste de caráter universal, reforçando a colaboração com os organismos internacionais. No imaginário coletivo, surge a representação da enfermeira como mulher economicamente emancipada.
Na luta simbólica por abrir espaços para a enfermagem na sociedade, havia que minimizar as reações à intrusão em espaços nos quais já se encontravam instaladas grandes forças como a Igreja, o Exército e a Medicina. A Missão adotou uma atitude de cautela, primeiro para com as religiosas, que tinham o controle de muitos hospitais da cidade, ainda que elas representassem o "status quo" contra o qual se posicionavam as dirigentes americanas, inclusive por pertencerem a grupos dissidentes à Igreja Católica Romana. Também não foi tocada a questão dos exercentes de enfermagem nos hospitais militares, ainda que suas qualificações não atendessem ao alto padrão por elas idealizado.
O grande desassossego causado pela irrupção da "enfermeira diplomada" no campo da saúde foi em parte contornado pela aceitação de urna estrita subordinação técnica, devendo as enfermeiras cumprir as ordens médicas, segundo o modelo vocacional de enfermagem (PEREIRA NETO, 1997, p. 43,146-148 e 152). Mas, ao mesmo tempo, ocorria o reconhecimento da escola, a organização de um serviço de enfermeiras de saúde pública, com a reserva de seus cargos para as futuras diplomadas. De outro modo, a elaboração de normas padronizadas e a comunicação interna escrita (BARREIRA, 1998, p. 6-7) garantiam autonomia administrativa à Superintendência de Enfermagem, a qual se organizaria no interior de uma hierarquia e disciplina de mulheres.
O projeto da Missão Parsons também ocasionou o desarranjo das representações femininas, aprovadas pela sociedade do Rio de Janeiro, e polarizadas nas figuras da mulher religiosa e da mulher casada, ambas economicamente dependentes. Ao contrário, a figura da enfermeira se aproximaria mais do estereótipo da "solteirona honrada", ou seja, a jovem mulher liberada, que, não desejando viver em uma posição de dependência e sujeição, pagava sua liberdade com a renúncia ao direito à sexualidade e à maternidade (SENNET, 1997, p.284). No sentido de neutralizar a reprovação a esta escolha, a Missão Parsons tratou de fazer alianças com damas da sociedade de mentalidade mais avançada, e que inclusive participavam do movimento feminista liderado por Bertha Lutz.
No entanto, o trabalho de implantação da enfermagem "de alto padrão", tanto nos serviços como na escola, devido às resistências das forças dominantes, muitas vezes teve que adotar a tática de ceder para avançar (CARVALHO, 1997, p.31-32).
Durante os dez anos de sua permanência no Brasil, Ethel Parsons (e depois dela, as diretoras americanas da Escola Anna Nery), foi a principal porta-voz autorizada da enfermagem brasileira junto aos médicos, à sociedade e à opinião pública. Suas estratégias para ganhar espaço, além do apoio da Fundação Rockfeller, que podia falar com autoridade sobre a enfermagem como profissão técnica de alto padrão, incluiam também os médicos professores da Faculdade de Medicina e os dirigentes do DNSP, "mandatários do Estado, detentores do monopólio da violência simbólica legítima no campo da saúde". (BOURDIEU, 1989, p.146).
Tendo como centro difusor a Escola de Enfermeiras, foi desde logo iniciada a invenção de tradições, explicitadas em símbolos (PERES et alii, 1998) e rituais, de inspiração religiosa e militar, e adaptados de escolas americanas, como modo de inculcação da hierarquia e da disciplina e de favorecer a construção de uma identidade nativa de enfermeira, contudo indissociável de suas figuras fundadoras, inclusive no que se refere aos aspectos étnicos (FERREIRA et alii, 1988).
Também, como forma de dar visibilidade e favorecer a aceitação social da nova profissão, visto que as relações de comunicação são sempre relações de poder (BOURDIEU, 1989, p.11), era sistemática a difusão de entrevistas pelo rádio e de notícias pelos jornais, acompanhadas de fotos (PARSONS, 1926, p.23). A escola também procurava demonstrar sua utilidade em todos os momentos dramáticos da vida social, como nas epidemias que aterrorizavam a cidade, e nas revoluções (no Golpe de Estado de 30 e na Revolução Paulista de 32) (SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p. 110 e 190; SANTOS, 1998, p.97-98;e VIEIRA, 1995, p.27).
A preocupação em garantir a reprodução do discurso da Missão Parsons e a intenção de inserir a escola de enfermagem na universidade determinaram a necessidade de formar uma liderança nativa que, no devido tempo, pudesse assumir os destinos da enfermagem nacional, mas que continuasse sob a influência da enfermagem americana. Assim, várias enfermeiras brasileiras, muitas das quais jovens recém-graduadas, foram indicadas para realizar estudos básicos e pós-graduados nos Estados Unidos. Deste modo, ao tempo em que aumentavam seu capital cultural, em termos de competência e prestígio profissional, aprendiam "in loco" o discurso da enfermagem americana, no idioma original, tornando-se assim lídimas sucessoras e interlocutoras preferenciais para uma reprodução sempre atualizada.
No entanto, se as enfermeiras americanas eram modelos a serem imitados, jamais poderiam ser igualadas pelas enfermeiras brasileiras (SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p. 200 e 203), que permaneceram sempre como cópias imperfeitas, daquela sua maneira de ser e de fazer, ou seja de seu habitus profissional. Não obstante, essas inatingíveis colegas, portadoras de uma outra cultura e detentoras de considerável poder, tinham a seu cargo a tremenda tarefa de implantar a enfermagem moderna no país.
E se até a II Guerra Mundial as enfermeiras brasileiras estiveram sujeitas à dominância direta das enfermeiras americanas, neste novo contexto continuaram sob sua influência. Essa nova fase de cooperação foi mediada pelo Ministério da Educação e Saúde, onde foi criado o Serviço de Cooperação Técnica Inter-Americana (CARVALHO, 1976, p.48-49). Volta ao Brasil a primeira diretora da Escola Anna Nery, Claire Louise Kieninger, agora como assessora do governo americano para assuntos de enfermagem na América Latina, aqui permanecendo por 18 meses, quando inclusive foi paraninfa das alunas da Escola Anna Nery, da turma de 1942 (KIENINGER, 1975, p. 113; SAUTHIER & BARREIRA, 1999, p.135).
E em cooperação com o Instituto de Assuntos Inter-Americanos (IAIA) dos EUA, organizou-se o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) para viabilizar a extração de materiais estratégicos, e no qual foi destacada a atuação das enfermeiras americanas, embora bem pouco conhecedoras da língua, das características do povo e das áreas de trabalho (Alvim, 1959, p. 146,150,153). E no pós-guerra, durante o período de redemocratização do país, essas enfermeiras continuaram a assessorar a enfermagem nacional.
O DISCURSO DOS ENFERMEIROS ANONÉRI
Logo após a formatura da primeira turma, a escola do DNSP tomou a denominação de Escola de Enfermeiras d. Anna Nery, passando a ter como patrona uma figura representativa dos ideais tanto religiosos como patrióticos. A adesão inicial das enfermeiras brasileiras ao modelo anglo-americano de enfermagem foi plena e reforçada pelas viagens de estudo aos EUA. E até porque um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das relações de submissão em relações afetivas, e a transformação do poder em carisma, o qual suscita uma espécie de encantamento.
A saída deste estado de alienação simbólica deu-se pela progressiva apropriação do discurso das enfermeiras americanas pelas nativas. Estas, respaldadas pelas profundas mudanças políticas e sociais (das quais a revolução de 30 é emblemática), elaboraram uma crítica e criaram um novo espírito de grupo (o ananerismo). Este processo de desligamento das categorias de percepção e de apreciação dominantes ocorreu na medida do reconhecimento das novas líderes como figuras autorizadas a enunciar o discurso da enfermagem nacional. Neste modelo, o cuidado feminino e profissional é enquadrado por um discurso populista. A mística da enfermagem ganha forte tom nacionalista, reforçando ainda mais a colaboração com o governo. No imaginário coletivo, ganha força a enfermeira como anjo branco, mas, em meados do século, a enfermagem brasileira dá provas de maturidade.
O fato de a enfermeira brasileira ser geralmente jovem e solteira, se a livrava do peso da autoridade do marido, também a privava da força de sua desaprovação para não fazer aquilo que ela não desejava. Mas o fato de não dever obediência, nem a um marido, nem ao bispo, fortalecia sobre ela o poder masculino das autoridades civis e o poder feminino das enfermeiras americanas. E grande parte das enfermeiras ananéri, até certo ponto, compartilhava daquelas representações sobre a mulher brasileira (e principalmente sobre a mulher solteira), o que nelas induziria, "na consciência e na vontade", uma certa forma de concordância, e portanto de cooperação, quanto à sua própria subalternidade (GAUDELIER, 1995, p.98). E isto porque a submissão à ordem estabelecida nem sempre equivale a "um consentimento consciente e a uma adesão eletiva" e sim a "um reconhecimento prático, tácito e infraverbal", isto é, a "uma "violência simbólica" (BOURDIEU, 1995, p.58). ;
Mas até porque entre os poderes há aqueles que operam pela negatividade, como o poder de obstrução, ou seja, o poder de dizer não (HÉRITIER-AUGÉ, 1995, p.105), as brasileiras chegaram até a contestar, respaldadas por novas alianças, a presença mesma dessas colegas estrangeiras. No início da década de 30, a enfermagem nativa mostra sua liderança. Ao assumir a direção dos serviços de enfermagem na capital federal, e atuando, desde 1933, como representantes do Ministério da Educação e Saúde nos estados, governados por interventores federais, muitos dos quais militares, várias enfermeiras obtiveram o apoio das autoridades sanitárias (LIMA, 1952, p.86-87 e 1968, p.5-6), representadas por médicos amigos da nova ordem revolucionária (MAGALHÃES, 1980, p.203). Mas o governo da Escola Anna Nery só ao final da década é assumido em caráter definitivo pelas enfermeiras brasileiras.
Entretanto, ao final da década de 30, persistia a oposição dos médicos às enfermeiras, como registra a última diretora americana da escola: "nos últimos anos têm surgido reclamações por parte de elementos da profissão médica, alegando que a enfermeira está indo além de seus direitos e responsabilidades e tem usurpado os direitos da medicina ...''(PULLEN, 1937,p.31). Tais queixas evidenciam a luta simbólica travada por essas mulheres com a autoridade masculina de seus compatriotas, muitas vezes opositores das enfermeiras americanas, mas nem sempre seus aliados, mas com quem, de todos os modos, deveriam negociar um espaço.
Mas também foram mantidas pelas enfermeiras as antigas alianças com grupos de mulheres (BATALHA & BARREIRA, 1998) como a Associação Cristã Feminina (ACF) e a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF).
Com a partida das americanas, estreitou-se a associação entre as enfermeiras católicas e a alta hierarquia da Igreja, o que também refletia a aliança desta com o governo Vargas (TEIXEIRA et ALH, 1998, p.6,15 e 18). A enfermeira diplomada continuava a estar entre a freira e a dama, tendo que lutar por um espaço "entre a caridade e a filantropia". Mas essas figuras femininas, embora concorrentes, encontravam-se agora, as três, sob o manto da Igreja. No entanto, nem as religiosas, nem as damas da sociedade, que executavam ambas trabalho não remunerado, mas competitivo ao da enfermeira, poderiam se constituir em figuras a serem por elas imitadas. De outro modo, o voto de pobreza das irmãs e a dependência econômica das casadas deixavam sozinha a enfermeira profissional, para falar em nome de sua carreira e das recompensas materiais a ela devidas (BARREIRA, 1997, p.166, 235 e 268).
Sendo as enfermeiras quase sempre funcionárias do governo, não chega a surpreender que reproduzissem o discurso oficial, como registram os "Anais de Enfermagem", revista da associação de classe. A incorporação do discurso médico pelas enfermeiras era favorecido por sua autoridade de homens, aos quais é atribuída uma distinção natural, "bastando-lhes ser o que são para ser o que é preciso ser" (FONSECA, 1996, p.69), mas também por seu prestígio de pessoas bem colocadas socialmente, muitas vezes sábios ou cientistas, cujo respaldo político, ademais, lhes era de todo necessário. E se tomava tanto mais fácil pela presença dos médicos nos espaços profissionais, onde os ideais e aspirações de classe média reproduziam-se sob a forma da observância de uma ética profissional e de uma etiqueta institucional (BARREIRA, 1997, p.350).
Enquanto a enfermagem foi uma profissão consentidamente paramédica, muitas turmas de enfermeiras foram formadas "sem maiores questionamentos sobre a razão de ser da profissão na sociedade" (BAPTISTA & BARREIRA, 1997, p.172). E mesmo porque o processo de socialização ocorrido em seus lares, sua formação profissional e as expectativas de papel como enfermeira coincidiam no essencial, isto é, na ênfase no cumprimento das normas. E até por isto nem sempre a resistência das mulheres à submissão assumiu "a forma de um discurso de rejeição ou de recusa"; ao contrário, muitas vezes ela surgiu "do interior do seu consentimento, pela apropriação e aproveitamento dos discursos masculinos em causa própria, realizando "uma inversão da ordem estabelecida" (CHARTIER, 1995, p.40 e 44). Na prática houve também a utilização do potencial subversivo da mística da enfermagem: a devoção a uma causa, a conformação da imagem e dos gestos ao discurso masculino, sobre o que deve fazer, sentir e pensar a enfermeira, ao realizar o modelo ideal, faz jús à aprovação, à admiração e à recompensa da legitimação.
A II Guerra provocou uma nova configuração do campo pois, ao tempo em que abriu espaços para as enfermeiras nacionais, submeteu-as a novas influências da política e da enfermagem americanas, com as quais elas colaboraram intensamente. Neste cenário, a enfermeira de saúde pública brasileira encontrou seu espaço de atuação nas zonas rurais do país, segundo um outro modelo de prática, que veio a produzir parte importante da literatura técnica de enfermagem no Brasil. A difusão do modelo do Sesp fez com que o mesmo viesse a se tornar praticamente oficial e único, ainda que nunca alcançado pelas secretarias estaduais de saúde (BARREIRA, 1997, p.79).
A enfermagem de saúde pública nacional, acompanhando a ampliação do Estado burocrático, se expandiu e se modificou. Ao mesmo tempo, em um contexto de uma política de proteção à saúde do trabalhador, desenvolveu-se um notável esforço de modernização dos hospitais e parcela considerável das diplomadas passou a ser por eles absorvida. Deste modo, foi deixando de ser característica a imagem da enfermeira brasileira como enfermeira de saúde pública.
Nessa fase da luta por reconhecimento, era vital legitimar a associação de classe como representante da enfermagem nacional, capaz de prestar assessoria pronta e eficaz aos poderes executivo e legislativo. Neste sentido, na década de 50, a Associação Brasileira de Enfermagem/ABEn, face às demandas dos órgãos governamentais brasileiros e das agências internacionais de fomento na área da educação e da saúde, solicitou o apoio da Fundação Rockfeller para a realização de um inquérito de âmbito nacional, sobre a situação da enfermagem no Brasil, e que foi a primeira pesquisa de enfermagem realizada no país: o célebre Levantamento de Recursos e Necessidades de Enfermagem (LRNE), realizado entre 1956-1958 (CARVALHO, 1976, p.294-306).
Este Levantamento teve profunda e duradoura repercussão. A realização exitosa deste ambicioso projeto conferiu à ABEn o desejado reconhecimento, nacional e internacional, de sua capacidade de enunciar um discurso autorizado sobre a enfermagem, melhorando a posição da carreira nos campos concorrenciais da educação e da saúde. Seu efeito simbólico não foi de menor importância: embora o relatório da pesquisa tenha demorado cerca de duas décadas para ser publicado em português, dele circularam cópias, e as enfermeiras sabiam de sua existência e importância, fazendo com que este se constituísse em capital cultural comum, que lhes possibilitou elaborar formas de percepção e de apreciação mais favoráveis à profissão. Enfim, a enfermagem brasileira se desvelava, vinha a público e proclamava suas verdades.
A FUNÇÃO SOCIAL DE UMA HISTÓRIA DA ENFERMAGEM BRASILEIRA
Diante de um futuro de incertezas e face aos problemas de uma prática cada vez mais tecnificada e especializada, que submete o conhecimento a um infindável fracionamento, ocorre uma permanente redefinição das diferenciações entre os grupos de interesse, e que se impõe às escolas, às carreiras e às especialidades (BOURDIEU, 1995, p.58).
Além disso, a velocidade crescente da desconstrução das idéias e a seleção intencional das informações, que configura uma "comunicação em mosaico", nos traz uma pungente consciência do efêmero, no qual "todo sentimento de continuidade é destroçado, tempo e espaço se despedaçam, a lembrança se quabra e o mundo se fragmenta. ..''(Chauí in BOSI, 1987, p. xxxii e xxv). Não obstante, todo programa universitário deve perseguir a formação de uma consciência crítica e reflexiva e de uma atitude intelectual. Para tanto, a análise histórica, porque mostra os limites das situações de poder, ancora nossa esperança e contrabalança a sensação de privação do sentido do cotidiano presente. E, ao mesmo tempo, a história, ao fazer a articulação dos tempos e dos modos - passado, presente e futuro -pode preencher a função de unir o começo e o fim" (BOSI, 1987, p.39-40 e 45).
Como vimos, até um passado recente (e de modo geral), as enfermeiras assimilaram fortemente os discursos dos grupos dominantes, o que, em última análise, insere a questão no âmbito das relações de gênero. A aprendizagem de gênero é uma forma de violência simbólica mediada por uma "ação psicossomática", posto que se inscreve, tanto nos corpos, sob a forma de disposições visíveis na maneira de usar e de cuidar, do seu corpo ou do corpo dos outros, como nas mentes, sob a forma de princípios de divisão e categorias de percepção dos corpos alheios. Daí que a divisão entre os sexos não só diferencia mas subordina e desiguala as mulheres em relação aos homens.
Esta desigualdade sempre foi manipulada pelos grupos de maior poder simbólico, para a perpetuação de privilégios (BAPTISTA & BARREIRA, 1997, p. 73,88,135-139,145,175), segundo uma negociação, na qual, em troca de uma fala desqualificada, obtinha-se uma relativa aceitação no campo, no entanto incompatível com a afirmação de um projeto existencial próprio.
A violência simbólica embutida nas relações de gênero "é sempre histórica, cultural e lingüísticamente construída e é sempre afirmada como uma diferença de natureza, radical, irredutível e universal". (CHARTIER, 1995, p.41). E ainda hoje se tenta fazer crer que tais posições, que são normativas e arbitrárias, seriam o produto de um consenso social, e não de um conflito (SCOTT, 1989, p.15 e 20-21).
Ademais, aquelas funções de mediadora, atribuídas à enfermeira desde o início da profissão, têm garantido que o conhecimento médico permaneça "complexo, inatingível e incompreensível por um leigo", contribuindo assim para a preservação de sua posição e status. Tais funções exigem da enfermeira, e cada vez mais, a capacidade de compreender acuradamente o discurso médico (oral e escrito), e de se fazer compreender com exatidão, na mesma linguagem. Ao contrário, essa retradução permanente "em linguagem inteligível", de acordo com o capital cultural de cada funcionário ou cliente, faz com que este discurso, pela enfermeira mesma vulgarizado, lhe seja referido como próprio à sua profissão, o que tanto mais facilita sua desvalorização e, ao mesmo tempo, garante a persistência da diferenciação imprescindível à manutenção daquelas desigualdades.
Ao contrário, a compreensão da sociedade enquanto construção histórica cotidiana (LOPES, 1996, p.55) permite a descoberta da possibilidade de um futuro "desfatalizado" para a enfermagem (FONSECA, 1996, p.67), pois "não se sabe o que se é (e o que se pode ser), se não se for capaz de sair das determinações atuais" (BOSI, 1987, p.3940). Esta atitude, por sua vez, leva à formação de uma consciência da necessidade de preservação da memória social, de modo geral, e da memória da profissão, de modo particular.
Parafraseando uma historiadora das mulheres, "uma nova história (da enfermagem) favorece a reflexão sobre as estratégias políticas atuais e o futuro (utópico), porque ela sugere redefinições e reestruturações, em conjunção com uma visão de igualdade política e social, que inclui não só o sexo, mas também a classe e a raça" (SCOTT, 1989, p. 13,21). Neste sentido, a abordagem, em uma perspectiva histórica, desses pontos críticos tem se mostrado um poderoso instrumento de dissolução de prejuízos ou preconceitos e também como uma possibilidade de entendimento intergeracional. Ao mesmo tempo, "o reconhecimento da articulação dessas e de outras categorias entre si, nos permite romper o esquema binário do "jogo das dicotomias e chegar a novas percepções e a uma conceitualização mais complexa e elaborada das relações de poder" (LOURO, 1996, p. 12 e 17).
A luta pela visibilidade é uma luta pela revisão da divisão das ocupações, pela repartição de papéis e de tarefas, que definem outras tantas atribuições de identidade, no interior de uma ordem simbólica. Mas é também uma busca por formas e oportunidades de rompimento da organização do visível, a qual, sendo sempre precária e litigiosa, enseja a aparição do sujeito em cena, se e quando, ele proclamar seu litígio (RANCIÈRE, 1995, p.53-55). Mas, justamente, uma forma típica de violência simbólica, é a intimidação, situação na qual os meios de expressão se perdem, a linguagem se quebra e o capital lingüístico se desorganiza. A timidez é precisamente um reconhecimento forçado de uma situação de dominação, cujo rompimento corresponde a uma luta cognitiva (BOURDIEU, 1996,p.37e33).
Um formidável trabalho de dimensão imaginária faz surgir, "ao pensamento e pelo pensamento, como legítimas, para todas as partes em presença, relações sociais nas quais certas partes do corpo social são subordinadas a outras". Mas como a manutenção desta situação exige um esforço permanente de justificação (GAUDELIER, 1995, p.98), na medida em que as categorias de percepção dominantes deixam de ser aplicadas, ocorre "a suspensão dos efeitos da violência simbólica" (BOURDIEU, 1995, p. 59 e 1989, p.117).
E vendo-se a si própria, a enfermeira torna-se um devir-sujeito que, mediante um jogo coletivo de desmontar e remontar, ao tempo em que se desfaz uma identidade, se tece outra, mas de uma outra maneira, a qual modifica as relações entre a ordem dos nomes e dos discursos e a ordem dos corpos e das condições. Pois quando as contradições se tornam manifestas para todos, o espaço social é (re)configurado, pela força de tornar visível o que não o era e de declarar o que antes se calava (RANCIÈRE, 1995,p.46e48).
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