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Ministério da Educação
CAPES

Volume 3, Número 3, Set/Dez - 1999

INTRODUÇÃO

Devemos começar dizendo que temos plena consciência do desafio que esta proposta impõe. Desenhar a enfermagem da década de 90 requer um esforço redobrado no sentido de evitar equívocos que possam advir do "achismo", o que, aliás, não seria difícil de acontecer.

Falar a respeito de um momento histórico que está acontecendo é sempre um risco. Há o risco de se fazer uma análise idealizada, por um lado, e o risco de se fazer uma análise demasiado dura-por outro lado. Não é fácil entender a dimensão dos problemas e é importante ter em vista que o momento pelo qual passamos só é compreendido em toda sua complexidade a partir de uma análise histórica, ou seja, retrospectivamente (BRANDÃO, 1994).

Neste sentido, é provável que só se tenha uma análisé aprofundada e mais fidedigna da atual década a partir de uma análise retrospectiva, ou seja, na década seguinte. Isto não impede, porém, que se olhe para a realidade que caracteriza' o momento ora vivido e se faça uma reflexão acerca da mesma, tendo claras as limitações e entraves, bem como toda a subjetividade que pode estar envolvida em tal empreendimento.

Considerando o que foi exposto acima, pretendemos, neste trabalho, fazer uma análise sobre a enfermagem brasileira na década de 90, estabelecendo uma relação com os movimentos que caracterizam o período. Assim, procuramos compreender o que acontece com o mundo, quais as idéias e projetos que são colocados na agenda global, como isto se coloca no âmbito do país e, finalmente, quais os reflexos de tais movimentos na saúde e na enfermagem. Ao final, intentamos apontar algumas possibilidades que vislumbramos para a profissão e seus agentes a partir deste final de século. Gostaríamos, contudo, de salientar que em função das características e dos limites advindos da elaboração de um artigo para publicação em periódico, não será possível fazer a discussão na profundidade que gostaríamos e que o tema permite.

 

O MUNDO HOJE

Se pudéssemos voltar no tempo e retroceder ao início do século, é provável que custássemos a acreditar que tudo que vivemos hoje é real. As mudanças registradas a partir do final do século passado são impressionantes, assim como a velocidade em que elas ocorrem. O século XX tem sido considerado pelos historiadores como o século dos extremos, em que:

"uma Era de Catástrofe, que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável" (HOBSBAWN, 1995, p. 15).

A chamada Era de Catástrofes sobreviveu a duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), à Grande Depressão econômica de 1930 e ao totalitarismo fascista, este derrotado pela aliança temporária entre países capitalistas liberais e a então comunista União Soviética. O fim da Segunda Guerra Mundial é acompanhado de um período de prosperidade e de avanços no campo social numa magnitude jamais vista antes na historia humana.

Este período, denominado Era de Ouro, teve curta duração, cujo fim principiou, na década de 70, iniciando-se uma fase de desestruturação, de crises., de incertezas e, em algumas partes do mundo, de verdadeiras catástrofes. O colapso do socialismo soviético e o fim da Guerra Fria, nos anos 80, pegou o mundo numa crise universal, que atingiu a todos os países do globo, embora de formas diferentes e em graus variados, não importando as conformações políticas, sociais e econômicas destes (HOBSBAWM, 1995).

Um dos principais resultados da Era de Ouro foi a unificação da economia mundial, permitindo operações "transnacionais", muitas vezes realizadas acima dos limites do Estado, gerando um sistema sobre o qual não se tem controle e que, cada vez mais, opera além das próprias ideologias de Estado. Se os problemas que tiveram início na década de 70 pareciam temporários, os anos seguintes demonstraram o contrário.

Durante toda a década de 80 e nos atuais anos 90, os países enfrentam sérias crises econômicas, para as quais os países capitalistas buscam soluções ortodoxas, muitas delas contidas no modelo neoliberal, que privilegia o mercado como elemento regulador da economia. O capitalismo, até mesmo nos países mais ricos, vê-se às voltas com problemas antigos como o desemprego em massa, a recessão e a desigualdade social.

À medida que a década de 90 foi se aproximando, ficou patente que a crise não se limitava apenas ao campo da economia, atingindo também o âmbito político. Os Estados-nação, inclusive os mais fortes e estáveis, vêem-se diluídos "pelas forças de uma economia supranacional ou transnacional e pelas forças infranacionais de regiões e grupos étnicos secessionistas" (HOBSBAWN, 1995, p. 20). Também mergulhados nestes problemas, os países pobres em geral, e a América Latina em particular, vivenciam um fenômeno, significativo: a explosão demográfica. Ao mesmo tempo que as taxas de natalidade continuam crescentes (embora em menor escala), os índices de mortalidade infantil caem e a expectativa de vida ao nascer aumenta, como resultado dos avanços registrados nas ciências e na tecnologia médica2.

Para enfrentar esta nova realidade, os governos dos países pobres promovem campanhas de controle de natalidade, como é o caso da "política de um só filho" na China e a esterilização de mulheres no Brasil e na índia. Os resultados de tais ações têm mostrado que essas não são soluções viáveis, pois evitar que nasçam pobres não resolve efetivamente o problema da pobreza, além de ferir os princípios de liberdade e dignidade humanas.

De acordo com STEPHAN-SOUZA (1995), costuma-se cometer o equívoco de se considerar que o desenvolvimento poderá ser alcançado pela diminuição do número de pobres ou até mesmo pela sua exclusão, o que na opinião da autora não é apenas equivocado, como também é tendencioso. Alguns eventos que trataram da questão demográfica3trouxeram a preocupação, especialmente dos países ricos, quanto à necessidade de se continuar levando adiante as políticas de controle demográfico, inclusive pressionando os países do Terceiro Mundo, entre eles o Brasil, a atuarem neste sentido, em geral sempre apontado a provável escassez de recursos naturais, conforme relata a autora acima citada.

O panorama acima, aliado à revolução da informática e das comunicações de uma forma geral e ao processo de migração, conferem um significado especial a este fim de década, cuja compreensão não é total neste momento. As grandes e irreversíveis mudanças ocorridas até agora deparam-se com uma profunda crise política, econômica, social e moral, as quais exercem uma influência determinante na vida das nações e de seus cidadãos.

 

SITUANDO O BRASIL

Considerado o campeão da desigualdade social, o Brasil entra na década de 90 com uma enorme dívida para com seu povo. O relatório da ONU divulgado recentemente mostra, em vez de dois "brasis" (como era visto anteriormente), três brasis (ISTOÉ, 1996). O primeiro deles, representado pelos estados do Sul e do Sudeste, tem um padrão de vida similar ao da Bélgica. O segundo, no qual estão incluídos os estados do Centro-Oeste e alguns do Norte, assemelha-se à Bulgária. O terceiro, que congrega os estados do Nordeste e parte do Norte, apresenta um padrão de vida comparável ao da índia. O que antes chamava-se belíndia, agora passa a ser denominada belbulíndia.

E importante lembrar que em cada um destes "brasis" há os demais, variando somente a intensidade de cada um deles. Com relação à distribuição de renda, os dados apresentados demonstram que os 10% mais ricos detêm uma renda 30 vezes superior a dos 40% mais pobres, revelando uma assombrosa disparidade social. O desempenho econômico do Brasil, por sua vez, expressa com clareza as enormes contradições nele existentes. Ostentando lugares de destaque na produção de laranja, café, açúcar, mandioca e na criação bovina, em outro extremo apresenta altos índices de mortalidade por causas evitáveis, como a diarréia, a desnutrição e a fome. Além disso, cerca de 22 milhões de habitantes vivem abaixo do limite de pobreza absoluta, sem trabalho, sem terra, sem alimento, sem dignidade, sem direitos, cuja cidadania está assegurada constitucionalmente mas não existe de verdade. É o que ele chama de cidadania de papel (DIMENSTEIN, 1995).

O Brasil figura entre as grandes economias mundiais. Em contrapartida, apresenta índices vergonhosos na área de educação: são 19 milhões de analfabetos e, o que é pior, existem 4 milhões de crianças entre 7 e 14 anos fora da escola e sem perspectivas de virem a ter algum nível de escolaridade no futuro. De acordo com SOUZA (1996), os indicadores utilizados provam, com todos os seus números, que o distanciamento cada vez maior entre o caminho econômico e o caminho social gera enormes contradições de todo tipo, tornando evidente uma sociedade desigual e injusta.

Seguindo a onda neoliberal que assola o mundo, as perspectivas de que o Brasil venha a diminuir o gigantesco fosso existente entre ricos e pobres são remotas, pelo menos a curto prazo. O atual governo brasileiro, muito mais preocupado em manter a "estabilidade econômica" (mesmo que a um preço demasiado alto), dá pouca importância às questões sociais. O desemprego em massa assusta a todos, causando insegurança e instabilidade. Ostentando um discurso de modernidade, o atual governo prega reformas e implementa políticas de reajustes que, e os fatos têm mostrado, só parecem aumentar as disparidades existentes. Estas reformas, por sua vez, trazem em seu ideário propostas do modelo neoliberal (os governantes preferem chamar de "neosocial"), cujos pontos básicos fizeram parte de tantas outras reformas ao redor do mundo. Significa dizer que tais reformas se dão em escala mundial, o Brasil é apenas um dos alvos.

Nesta nova onda ideológica, há também aqueles que defendem o fim de políticas distributivas em que o Estado atua como elemento regulador. Na opinião de GENRO (1996), o pensamento hegemônico gerado pelos monopólios insiste em três pontos básicos: tudo que é estatal e público é antigo e atrasado; o mercado determina tudo e o estado é obsoleto: esquerda é sinônimo de oposição a inovações. Tal pensamento se dá, é importante lembrar, num mundo cada vez mais miserável e com riqueza cada vez mais concentrada. Esta conformação política, social e econômica do país repercute seriamente na vida dos diversos setores da vida nacional, assim como no cotidiano das pessoas, especialmente daquelas mais simples, colocadas na linha de segregação e exclusão social.

O setor saúde, importantíssimo para o desenvolvimento de qualquer nação, é um dos que mais vem sofrendo as conseqüências das decisões políticas e econômicas e da incorporação ideológica do neoliberalismo na arena nacional. Na atual década, "tendo como pano de fundo uma profunda crise econômica e política, apresentam-se, na arena sanitária brasileira, dois projetos alternativos em permanente tensão: um, portador de nítida hegemonia, o projeto neoliberal e, outro, contra-hegemônico, a reforma sanitária" (MENDES, 1994, p. 19-20).

A Constituição de 1988 garante a saúde enquanto um direito de todos os brasileiros e um dever do Estado. Este caráter de universalização, contudo, foi atropelado por uma série de determinantes estruturais e conjunturais, e o que se tem hoje, de fato, é uma espécie de "universalização excludente", materializada por uma prestação de serviços de saúde seletiva, discriminatória, diferenciada para graus distintos de cidadania. Esta é a realidade de um país em que "uns são mais cidadãos do que outros".

Consolidado nos anos 80, o projeto neoliberal no setor saúde parece ganhar ainda mais força na presente década. A crise do setor público e o desmantelamento das instituições, o crescimento exponencial do setor privado, que logrou modernizar-se e obter um certo grau de autonomia, assim como as políticas públicas em geral e as de saúde em particular, determinam uma situação que pouco favorece a existência de um sistema de saúde que possa atender à população como um todo, em que todos sejam de fato tidos como cidadãos.

O atual panorama nacional, que parece um tanto sinistro, exige o posicionamento e a atuação dos profissionais de saúde, tanto no âmbito de sua competência profissional, quanto no âmbito da vida civil. Neste sentido, nós profissionais da enfermagem podemos desempenhar um papel importante na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual, através de nosso trabalho e de nossa participação na vida nacional.

 

E A ENFERMAGEM?

Inserida em um sistema de saúde centrado na atenção médica curativa, a enfermagem, nos anos 90, vem desempenhando uma prática que não difere muito daquela realizada na década anterior. Inúmeros trabalhos elaborados nos anos 80 tiveram a profissão como objeto de análise e reflexão, em que a mesma é visualizada enquanto uma prática social, um trabalho interdependente e complementar dentro do processo de trabalho em saúde, visão de certa maneira consolidada na atual década. Concordamos com este pensamento, acrescentando ainda que acreditamos em seu caráter histórico e dinâmico. Neste sentido, a vemos como uma prática, cujo movimento é potencialmente capaz de gerar transformações, especialmente nos microespaços e em conjunto com outras práticas.

A discussão qué gira em tomo da profissão nesta década, assim como ocorreu na década passada, hão é homogênea. A imagem de prática neutra e harmoniosa já não mais tem espaço hoje. Coloca-se, atualmente, a existência de conflitos, diferenças, rupturas, o que é importante para a construção de debates que possam apontar caminhos possíveis e, por que não, transformadores.

Por outro lado, os problemas apontados não são novos e alguns remontam aos primórdios da estruturação da profissão no país, como por exemplo os baixos salários e a desvalorização social. Para (MEYER, 1992), o discurso mais crítico referente à enfermagem veiculado nos últimos anos também revela pessimismo e impotência dos profissionais diante da profissão, em que destacam-se referências à falta de status social e à desvalorização profissional e salarial, ao fato de ser uma profissão majoritariamente feminina, à limitada autonomia na tomada de decisões, à submissão aos poderes médicos e institucionais, ao não estabelecimento de limites de atuação profissional e à indefinição de funções.

A opinião acima (mesmo não sendo representativa do pensamento dos enfermeiros em geral, não deve ser desconsiderada) aponta alguns elementos presentes na representação e na prática dos enfermeiros identificados em outros trabalhos de investigação (NÓBREGA, 1991 ; VIETTA, UEHARA, NETTO,1998) e merece alguns comentários. Gostaríamos de começar pelo final dela. Primeiro, esse sentimento de impotência e o pessimismo não é algo que atinge apenas os profissionais de enfermagem mas uma parcela considerável dos profissionais de todas as áreas, e, porque não dizer, uma grande parte da população brasileira. Pensamos que isso seja resultado de uma série de dificuldades e problemas enfrentados pelo país e que se repetem ou até se agravam ao longo dos anos, sem perspectivas de solução a curto prazo.

Os profissionais de enfermagem, como os demais trabalhadores brasileiros, ressentem-se de tal situação e, muitas vezes, respondem a ela com tal sentimento. Não estamos querendo justificar a inércia ou o pessimismo, mas pensamos que isto não pode ser analisado isoladamente e sim dentro de um contexto mais amplo, em que muitas variáreis são colocadas. Tal sentimento de impotência, agregado ao pessimismo, são inegáveis e não podemos desconsiderá-los. Mas também não são prerrogativas de quem faz a enfermagem.

De fato, este é um problema complicado e de difícil compreensão. Não existem soluções fáceis ou receitas infalíveis. Entender que este é um problema que não está apenas restrito à internalidade da enfermagem pode gerar um certo conforto. Mas ao contrário do que possa parecer, aumenta a responsabilidade, uma vez que essa visão mais universal do problema implica em buscar alternativas e perseguir ações de âmbito coletivo, integrado, interdisciplinar e, portanto, mais complexos.

Traz também a idéia de responsabilidade coletiva e de inserção dos atores sociais na vida social concreta, o que implica em discursar menos e agir mais. Não nos referimos ao fazer mecânico, ao agir impensado, ao ato em si. Estamos falando da construção de uma práxis na qual ação e pensamento só se separam conceitualmente e de maneira relativa. Uma práxis que desvela e revela a realidade, que a transforma e que acredita na capacidade humana de fazer mudanças e gerir processos que resgatem ou afirmem sua humanidade.

Segundo, não cremos que a esta altura da profissão seja pertinente falar em indefinição de papéis e falta de limites estabelecidos. A Lei do Exercício Profissional aí está para mostrar o contrário, e não poderia ser mais detalhado na definição e nos limites de atuação de todos os integrantes da profissão. O que de fato acontece é o não cumprimento do que determina a Lei, em algumas (para não dizer muitas) instituições. Neste caso, a discussão é de outra ordem, na qual está embutido o compromisso político dos agentes de enfermagem frente às lutas que abarcam direitos e deveres das categorias.

Terceiro, a falta de autonomia e a submissão aos poderes médico e institucional é algo que deve ser rediscutido e redesenhado. Esperar plena autonomia numa prática que deve articular-se a outras práticas é quase um suicídio, ou uma espécie de morte por isolamento. Assim como os outros profissionais necessitam do trabalho de enfermagem para dar conta do processo de trabalho em saúde, os trabalhadores de enfermagem necessitam daqueles pelo mesmo motivo. Isto parece algo simples, mas não é, uma vez que as relações de trabalho, nas quais estão embutidas relações de poder e embate de forças, são extremamente complexas e implica em conflitos de toda ordem.

Neste sentido, advogamos a participação e a ocupação dos espaços possíveis pelos enfermeiros e até pela enfermagem como um todo, bem como uma discussão ampla acerca da questão do poder e de estratégias de alcance deste. Não nos referimos ao poder como um instrumento de dominação e de manutenção de privilégios, mas como um meio que possibilite a participação na tomada de decisões importantes e necessárias às mudanças.

Finalmente, a ausência de status e a desvalorização social, além de não ser prerrogativas da enfermagem, são duas faces da profissão que a acompanham desde longa data e não apenas no Brasil. Não queremos dizer com isso que estas proposições não sejam verdadeiras mas acreditamos que está na hora de superarmos este discurso, que às vezes até parece autopunitivo. E a superação de tal discurso pode se dar, não na sua negação e/ou afirmação, mas na concretude do trabalho cotidiano, na construção diária deste trabalho e na identificação de seus limites e possibilidades. No aproveitamento do que há de positivo e na ruptura com o que há de negativo. Na conjunção entre o novo e o velho, no respeito às diferenças, na valorização das positividades e na compreensão das negatividades.

Acreditamos, porém, que estas possibilidades, para se tornarem uma realidade concreta dependem, em grande medida: da ocupação dos vários espaços possíveis; do reconhecimento dos limites e potencialidades; da valorização dos agentes e de seu trabalho; da reorientação do processo de formação profissional e, especialmente, da participação dos atores em todos os processos de construção do cotidiano. Alguns trabalhos produzidos nesta década voltam-se para uma nova forma de olhar o trabalho de enfermagem, identificando nas ações cotidianas rasgos de superação e significados até então não visíveis (REZENDE, 1995; PEREIRA, 1995, BELLATO, 1996).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os desafios que se colocam nesta década são muitos. Os profissionais de saúde, não só como integrantes do setor mas também como cidadãos responsáveis e em pleno gozo de sua cidadania, têm um grande compromisso para com a população e com o projeto de construção de uma sociedade mais justa. Isto pode parecer demasiado utópico e inatingível, traços de esperança impossível. Contudo, entre esperança e desesperança optamos pela primeira, a qual, no dizer de Paulo Freire, é uma necessidade ontológica. Para este mago da utopia "a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo" (FREIRE, 1994, p. 10).

O movimento que toma conta do mundo hoje, ou seja, o projeto neoliberal, em que se privilegia as desigualdades como um elemento necessário ao equilíbrio (do mercado), contribui em grande parte para o desmantelamento das utopias, as quais são fundamentais ao processo de construção do novo. O fenômeno da globalização, que por um lado parece derrubar ou limitar as fronteiras entre os povos e as nações, por outro lado pode transformar-se num processo incontrolável, sem regras ou leis que a regem, declinando para a barbárie, em que o domínio se dá pela força.

A enfermagem brasileira na atual década, inserida neste contexto tão complexo, parece responder a ele como a maioria das profissões: nem com inércia nem com grandes lutas, seguindo o movimento geral da sociedade, que no momento é, contraditoriamente, de uma certa letargia. Os grandes movimentos sociais da década de 80 deram lugar a uma frenética luta das minorias pela conquista de seus direitos. Tal acontecimento tem nuanças tanto positivas quanto negativas. As positivas dizem respeito à valorização do indivíduo e suas lutas pessoais para a garantia de uma vida mais justa e digna. As negativas referem-se ao desmoronamento dos projetos coletivos em detrimento dos interesses de ordem pessoal. O grande desafio deste fim de século é: como não perder de vista o binômio sujeito/sociedade?

Posicionar-se diante de tão complexo panorama não é tarefa fácil. Mas é preciso fazê-lo, não podemos nos abster disso. Não é possível desenvolver a práxis da qual falamos acima, que explora todas as possibilidades do real, se declinamos de fazer escolhas. E necessário identificarmos quais são nossas opções e de qual lado do rio iremos amarrar nossas canoas: se do lado cujo trabalho é desenvolvido no sentido de canalizar esforços para a manutenção do status quo ou do lado em que se trabalha para o seu contrário, ou seja, a transformação da realidade, sendo importante lembrar que:

"na luta dos contrários, o novo que surge não elimina o velho de forma absoluta. O novo significa um novo objeto, uma nova qualidade, mas o novo possui muitos elementos do antigo, os elementos que são considerados positivos na estrutura do novo e que, de acordo com as circunstâncias onde se desenvolverá o novo, continuam existindo neste" (TRIVIÑOS, 1995, p.72).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2.BELLATO, R. O mito do instituído e a banalidade do vivido no quotidiano de um hospital universitário. Ribeirão Preto, 1996, 144 p. Dissertação (Mestrado). Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 1996.

3.BRANDÃO, Z. (Org.). A crise dos paradigmas e a educação. São Paulo: Cortez,1994.

4.DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os direitos humanos no Brasil. 1 led. São Paulo : Ática, 1995.

5.FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

6 GENRO, T. Estado: opulência e dominação na terceira onda. Revista Adusp, n. 6, p.l 1-12, mai. 1996.

7.HOBSBAWN, E. Erados extremos: o breve século XX -1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

8.LAURENTI, R. Transição demográfica e transição epidemiológica. 1990, 32p. (Mimeog.)

9.MENDES, E. V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In: MÊNDES, E. V. (Org.).Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. 2ed. São Paulo/Rio de Janeiro : Hucitec/ Abrasco, 1994.

10.MEYER, D. E. E. Ao olhar-se no espelho, a enfermeira não tem gostado da imagem que aí vê refletida. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 45, n. 2/3, p. 176-182, abr./set., 1992.

11.NOBREGA, S. M. Enfermagem: a prática da profissão e a ideologia da submissão. Fortaleza, 1991,273 p. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Ceará, 1991.

12.PEREIRA, W. R. A enfermeira e o seu fazer: uma abordagem sob a perspectiva de gênero. Ribeirão Preto, 1995,211 p. Dissertação (Mestrado). Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 1995.

13.REZENDE, A. L. M. de. O fio das moiras: o afrontamento do destino no quotidiano da saúde. Florianópolis: UFSC, 1995.

14.SOUZA, H. de. Brasil, campeão de desigualdade. Revista Adusp. n .6, p. 6-10, mai. 1996.

15.STEPHAN-SOUZA, A. I. Relendo a política de contracepção: o olhar de um profissional sobre o cotidiano das unidades públicas de saúde. Caderno de Saúde Pública, v. 11, n. 3, p. 406-424, jul./set. 1995.

16.TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1995.

17.VIETTA, E. P. ; UEHARA, M ; NETTO, K. A. S. Depoimentos de enfermeiras hospitalares da década de 80: subsídios para a compreensão da enfermagem atual. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 6 n. 3, p. 107-116, julho, 1998.

 

1. Trabalho desenvolvido na disciplina "Problemática de Enfermagem vinculada ao Programa de Doutoramento em Enfermagem da EERP-USP, apresentado no 10° SEN PE realizado de 24 a 27 de maio em Gramado-RS.
4. Diferentemente do que aconteceu nos países desenvolvidos, em que a transição demográfica foi resultado, principalmente, de fatores sociais, nos países do terceiro mundo esta tem sido influenciada basicamente pela tecnologia médica (LAURENTI, 1990). .
5. Cito como exemplos a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, a chamada Rio-92, realizada no Rio de janeiro em 1992 e o 9º encontro de Assuntos populacionais, realizado em Caxambu em 1994.

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