Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013
REFLEXÃO
Abordagem da dependência de substâncias psicoativas na adolescência: reflexão ética
para a enfermagem
Cecília Nogueira Valença
1
Isabel Cristina Araújo Brandão
2
Raimunda Medeiros Germano
3
Rosana Lúcia Alves de Vilar
4
Akemi Iwata Monteiro
5
1
Enfermeira. Doutora em enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PGENF-UFRN).
Docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Caicó-RN. Brasil. E-mail: cecilia_valenca@yahoo.com.br
2
Enfermeira. Mestre em Enfermagem pelo PGENF-UFRN.
Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: isabrandao_ab@hotmail.com
3
Enfermeira. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP.Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: rgermano@natal.digi.com.br
4
Enfermeira. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: rosanaalves@supercabo.com.br
5
Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto(USP). Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: akemiiwata@hotmail.com
Recebido em 15/07/2011
Reapresentado em 11/01/2012
Aceito em 06/03/2012
RESUMO
O uso indiscriminado de drogas entre os jovens cresce progressivamente no Brasil e
no mundo. Este estudo objetivou refletir acerca da abordagem ética da enfermagem na
atenção a adolescentes usuários de drogas lícitas e ilícitas. Trata-se de um estudo
teórico de caráter reflexivo fundamentado em uma revisão bibliográfica do tipo narrativa,
utilizando livros e artigos científicos. Emergiram reflexões sobre a dependência de
substâncias psicoativas em expansão na adolescência que culminaram na discussão sobre
a abordagem ética da enfermagem ao adolescente usuário de drogas. O enfermeiro pode
priorizar uma assistência voltada para a promoção da saúde do adolescente em uma perspectiva
emancipatória dos jovens na prevenção do uso de drogas. Concluiu-se que o enfermeiro
deve realizar uma abordagem ética aos adolescentes dependentes químicos, considerando
seu contexto e sua subjetividade.
Palavras-chave: Enfermagem; Drogas ilícitas; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Bioética
INTRODUÇÃO
Nos tempos atuais, o uso indiscriminado de drogas lícitas e ilícitas cresce progressivamente no Brasil e no mundo, entre os jovens das mais diversas classes sociais. Trata-se de uma questão complexa com enormes danos nos âmbitos privados e públicos, que tem motivado diversos estudos na América Latina sobre seus impactos na saúde e na sociedade contemporânea.
O problema da dependência dos tóxicos, da droga, ou, como sugere a Organização Mundial da Saúde (OMS), do consumo de substâncias que gera dependência de substâncias psicoativas, é complexo, qualquer que seja o ponto de vista para essa questão: para os médicos e psicólogos, para os políticos e sociólogos. Entendemos como drogas aquelas substâncias que geram drogadição, ou seja, intoxicação e hábito e/ou dependência química, e que, por seus efeitos sobre o psíquico e sobre o comportamento, são nocivas ao indivíduo e à sociedade1.
Em um estudo multicêntrico, foram recrutados em sete países da América Latina (Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras e México) familiares e pessoas próximas a usuários de drogas ilícitas que expuseram seu ponto de vista sobre fatores de risco e proteção, serviços de tratamento, políticas e leis relacionadas ao uso de drogas ilícitas. A maioria dos participantes escolheu fatores psicossociais, e não fatores genéticos ou biológicos, para explicar a causa dos problemas do uso de drogas, considerando familiares e governantes como principais responsáveis pela prevenção do uso de drogas. As instituições religiosas foram mencionadas com frequência dentro do contexto de acesso ao tratamento aos usuários de drogas, tendo como principais barreiras ao tratamento a vergonha sobre o uso de drogas, o custo e as opções insuficientes de terapêuticas2.
Foi realizado um estudo nas 107 maiores cidades do Brasil, com o objetivo de estimar a prevalência do uso de drogas ilícitas, álcool, tabaco e o uso não médico de medicamentos psicotrópicos. O uso na vida de álcool, com 68,7%, foi próximo aos 70,8% do Chile; o de tabaco foi de 41,1%, inferior aos EUA (70,5%); o de maconha foi de 6,9% próximo ao da Colômbia (5,4%) e abaixo dos EUA (34,2%). O uso na vida de cocaína foi 2,3%, inferior aos EUA (11,2%) e o de solventes foi de 5,8%, bem menor que no Reino Unido (20,0%). Os estimulantes tiveram 1,5% de uso na vida e os benzodiazepínicos, 3,3%3.
Os resultados dessa pesquisa mostraram que as drogas legais, como o álcool e o tabaco, são os problemas de saúde pública mais proeminente no Brasil. A realidade brasileira do consumo de drogas, embora semelhante à de outros países, tem particularidades que precisam ser respeitadas na elaboração de programas de prevenção e na implantação de políticas públicas adequadas no campo das drogas psicotrópicas3.
A partir desses estudos, podemos perceber que a problemática das drogas lícitas e ilícitas envolve a participação da família, organizações religiosas, escolas, Estado e sociedade, como um todo, tendo como principais desafios a elaboração de estratégias eficazes de prevenção ao uso e a ampliação do acesso aos tratamentos de recuperação de dependentes químicos.
Para a OMS, adolescentes são pessoas de 10 a 19 anos; já o Estatuto da Criança e do Adolescente define o adolescente como o indivíduo que está inserido dentro da faixa etária de 12 e 18 anos de idade. Inicialmente, o referido período da vida é apresentado como uma categoria vinculada à idade, ao desenvolvimento biológico e à capacidade corpórea, entretanto é na adolescência que ocorrem transformações subjetivas como as comportamentais, intelectuais e sociais4.
Por ter se tornado um problema de saúde pública, o uso de drogas na adolescência requer atenção especializada e abordagem integral do adolescente, pois envolve lidar com suas diferentes questões e transformações, considerando, inclusive, o olhar deste sobre si mesmo e sobre o mundo5. Em face dessa realidade, destaca-se o papel do enfermeiro no desenvolvimento de ações que estejam direcionadas ao público juvenil.
O enfermeiro deve atuar na redução da demanda crescente de usuários de drogas e produzir conhecimento científico e tecnológico específico, que indique contribuições para a resolução de problemas de seu uso e abuso na América Latina, e uma visão multidimensional do fenômeno ajudará a compreendê-lo6.
Destacamos, também, a necessidade de uma reflexão ética acerca da atuação da enfermagem diante do abuso de drogas por adolescentes, uma vez que tal atenção não dever ser restrita a programas ministeriais, os quais têm como objetivo prestar atendimento de forma pontual, sem considerar o desenvolvimento integral do adolescente.
Partindo do pressuposto de que a equipe de enfermagem atua, frequentemente, com o público adolescente e que, muitas vezes, não está preparada para agir de maneira ética em caso de uso de drogas, o presente estudo visa contribuir para a reflexão acerca dessa realidade com intento de promover uma superação desses limites. Para tanto, apresenta discussões teórico-conceituais sobre a atuação ética da enfermagem na atenção à saúde de adolescentes usuários de drogas lícitas ou ilícitas.
Nessa perspectiva, o presente artigo foi produzido a partir das discussões desenvolvidas na disciplina Ética e Bioética na Saúde, do Programa de Pós-Graduação em enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PGENF-UFRN).
Tem como objetivo refletir acerca da abordagem ética da enfermagem na atenção a adolescentes usuários de drogas lícitas e ilícitas. Sua relevância consiste no auxílio a uma conscientização ou ao desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de superar possíveis entraves encontrados por profissionais dessa categoria diante de questões complexas envolvendo a dependência de substâncias psicoativas e a realidade.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo teórico de caráter reflexivo fundamentado em uma revisão bibliográfica do tipo narrativa. Como fontes de informações foram utilizados alguns capítulos de livros relacionados à adolescência, bioética e drogadição e, principalmente, artigos científicos de periódicos eletrônicos sobre adolescência e dependência química, indexados no Scientific Electronic Library Online (SciELO Brasil) e no Banco de Dados de Enfermagem (BDENF), utilizando os seguintes descritores: enfermagem; drogas ilícitas; transtornos relacionados ao uso de substâncias; bioética.
As fases de elaboração deste estudo compreenderam: inicialmente, a identificação e a localização de referencial teórico que contemplasse a temática da bioética e drogadição na adolescência. Em seguida, foram realizados fichamentos e arquivamento das informações pertinentes ao estudo, culminando na leitura e análise crítica e na redação deste artigo. Na análise, foram utilizados livros e artigos, desde que respondessem ao objetivo do estudo.
Foram encontrados 2 artigos no Scielo Brasil e 26 no BDENF cruzando os descritores enfermagem, drogas ilícitas e transtornos relacionados ao abuso de substâncias. Dos 28 artigos encontrados nessa busca, foram utilizados 12 neste estudo.
O descritor bioética não forneceu artigos ao ser cruzado com drogas ilícitas e transtornos relacionados ao abuso de substâncias. Em cruzamento com o descritor enfermagem, foram encontrados 59 artigos no BDENF e 28 no Scielo Brasil. Contudo, os artigos encontrados nessa busca não foram utilizados por não se relacionarem diretamente ao tema da drogadição na adolescência.
A partir da leitura e síntese do material consultado, a partir de seus resumos, foram constituídos dois eixos de análise e reflexão: Reflexões sobre a dependência de substâncias psicoativas em expansão na adolescência e Abordagem ética da enfermagem junto ao adolescente usuário de drogas.
REFLEXÕES SOBRE A DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS EM EXPANSÃO NA ADOLESCÊNCIA
O consumo de drogas pelos jovens deve ser compreendido na sua complexidade contemporânea, pois a droga está colocada na condição de mercadoria de exportação e de importação vinculada aos interesses das grandes corporações internacionais de drogas lícitas e de narcotráfico. Assim, vem sendo estudado do ponto de vista epidemiológico, descrevendo-se, em geral, frequências de uso e tipo de drogas consumidas em alguns grupos de jovens, eleitos por similaridade da situação em que encontram, raramente pela similaridade de pertencimento de classe social7.
Na adolescência e na juventude encontra-se a maior quantidade de pessoas usuárias de drogas lícitas e ilícitas. Embora a classe social possa determinar qual droga de abuso essas pessoas possam consumir, haja vista uma variedade de preços que dependem, basicamente, do grau de pureza e do tipo de droga pretendida, sabemos que a dependência de substâncias psicoativas está presente em todas as camadas da sociedade, sendo um fenômeno danoso e letal em expansão.
Em um estudo realizado no município de Rio de Janeiro, o álcool é a substância psicoativa mais utilizada entre os adolescentes. Dentre os 702 sujeitos estudados, cuja faixa etária variou entre 13 e 21 anos, aproximadamente 6% já tiveram contato com drogas ilícitas8. Conforme pesquisas nacionais e internacionais, a relação entre uso e abuso de álcool e de drogas ilícitas e delinquência é muito estreita9.
Permanece a seguinte questão: o uso e/ou abuso de álcool e drogas ilícitas induzem ao comportamento criminoso ou, ao contrário, adolescentes com problemas de conduta têm maior probabilidade de utilizar droga, o que mantém e contribui para a escalada das atividades delinquentes?
A interface entre a dependência de substâncias psicoativas, a violência e a delinquência infanto-juvenil, embora existente, não está completamente compreendida com relação à sua etiologia, pois envolve um olhar mais amplo sobre o impacto da droga lícita e ilícita na adolescência, na saúde e na sociedade.
Para representar o quadro da situação, precisamos lembrar que existem linhas internacionais de tráfico da droga, das grandes fontes de produção ao mercado da distribuição e do consumo. Em todas as relações mencionam-se alguns índices da extensão do fenômeno, em uma tentativa de quantificá-lo. Mortos pela droga, substâncias apreendidas, pessoas presas, dependentes químicos em tratamento são, contudo, simples indicadores e amostras de apenas uma parte muito pequena do fenômeno1.
Nesse contexto, os adolescentes estão sujeitos a ser influenciados por hábitos e comportamentos não saudáveis, deparam-se com muitas mudanças, ficando vulneráveis ao impacto dos movimentos sociais, da tecnologia e do marketing. Assim, diversos fatores estão associados à experimentação ou não de drogas lícitas e ilícitas10.
Comumente, o uso de drogas se relaciona às características subjetivas e comportamentais da adolescência, tais como o sentimento de contestação, impetuosidade, idealismo e onipotência. Neste sentido, alguns estudos3,6,8,9,10 nessa fase têm desenvolvido a discussão sobre a associação entre o uso de drogas e outros problemas, tais como a prática do sexo inseguro e a gravidez indesejada, ressaltando a participação da família nesse processo.
O uso de drogas, também, pode interferir na prática do sexo inseguro dos adolescentes, deixando-os mais vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, DST/HIV/AIDS e à gravidez não planejada. O consumo de drogas influencia a saúde sexual dos adolescentes, pois conduz a relacionamento sexual com pessoas desconhecidas, sem a devida utilização do preservativo, além de favorecer o compartilhamento de materiais contaminados e gerar graves desajustes familiares.
O uso de drogas ilícitas por familiar residente no domicílio constitui fator associado à gravidez na adolescência, independentemente da inûuência de outros fatores relevantes, como idade da mãe na primeira gravidez, uso inadequado de métodos contraceptivos e baixa escolaridade dos pais10,11.
Por outro lado, em um contexto de baixa renda familiar e baixa escolaridade dos pais, o desejo de cursar a faculdade funciona como proteção à gravidez antes dos 18 anos entre estudantes de escolas públicas10,11.
Acerca desse fenômeno, a área de saúde coletiva contrapõe-se ao modelo hegemônico de guerra às drogas, ao mesmo tempo em que adota, criticamente, o modelo alternativo de redução de danos, pois oferece balizas para produzir ações educativas de caráter emancipatório7.
Acreditamos que, estimulados por metodologias apropriadas, os jovens das diferentes classes sociais expressam respostas que representem fortalecimento e estratégias de superação dos problemas que os abalam. Respostas educativas de caráter emancipatório podem ser desenvolvidas com jovens na atenção básica à saúde, para propiciar o entendimento das raízes do consumo de drogas, potencializando sua capacidade de aglutinação no caminho de soluções políticas e coletivas7.
No Brasil, essa concepção emancipatória, adotada pelas ações e serviços e políticas na saúde coletiva, encontra respaldo no desenvolvimento da autonomia dos adolescentes e jovens, pelo estabelecimento da conscientização cidadã sobre a dependência de substâncias psicoativas. Assim, ultrapassamos o mero discurso sobre os danos causados por cada tipo de droga, com a participação de instituições, tais como família, escola, igrejas e comunidade.
Nesta linha de pensamento, destacamos o papel dos pais e do ambiente familiar na relação do adolescente com o álcool e outras drogas, enquanto facilitadores das ações ou desencadeadores dos problemas. A inserção do sistema familiar nas intervenções de prevenção e tratamento reflete-se no enfrentamento das drogas, pois proporciona um controle dos fatores predisponentes à maior iniciação e à continuação do uso de drogas8.
Consideramos a dinâmica pedagógica voltada ao empoderamento pessoal o exercício necessário para cada membro familiar, por levar ao fortalecimento das intenções de práticas relacionadas às drogas. A capacidade dos membros familiares adultos de questionarem os seus próprios hábitos encoraja-os à aquisição de novas identidades, aculturação de práticas consideradas bons exemplos ao familiar adolescente12.
O papel da escola como eixo de formação diz respeito à instrução, cidadania e lócus de expressão de comportamentos e personalidades, bem como de formação de hábitos, caracterizando-se como espaço privilegiado para o desenvolvimento de programas preventivos e políticas públicas8.
Ressaltamos que, embora a participação das instituições sociais seja encorajada e importante para uma conjuntura tão caótica, como as drogas na adolescência, ela não deve substituir o papel do Estado, o qual, por sua vez, não pode atuar desarticulado com a dinâmica internacional de combate às redes de produção, exportação, importação, distribuição, venda e consumo de drogas e entorpecentes. Essa dinâmica deve agregar e envolver uma rede de colaboração solidária entre os países, com o compromisso ético de mudar o atual cenário dos fluxos lucrativos gerados pela dependência de substâncias psicoativas.
ABORDAGEM ÉTICA DA ENFERMAGEM AO ADOLESCENTE USUÁRIO DE DROGAS
A dimensão ética envolve todo o processo da droga: difusão, consumo, prevenção, empenho terapêutico e de reabilitação. Para além da dimensão ética, existem outras dimensões igualmente importantes (socioeconômicas, psicológicas, médico/farmacológica, políticas e legislativas) e inter-relacionadas. Considerando o lucro ilícito e imoral como o alimento da droga, exige-se para reprimi-lo e desencorajá-lo um compromisso de responsabilidade ética, de campos particulares, educativos e institucionais. Assim, o problema ético une todas as outras dimensões e fases de um itinerário de recuperação1.
Tendo em vista que a droga, por seu caráter ilícito e destrutivo, é imoral por ferir os valores sobre a vida humana, consideramos imperativa a reflexão ética sobre seu impacto e influência na sociedade e na humanidade. Nesta perspectiva, corresponsabilidades, nos planos individuais e coletivos, complementam-se em um compromisso solidário entre as diversas nações e pessoas do mundo voltado para a mudança.
A drogadição não pode ser extirpada sem o compromisso de todos os cidadãos, e das instituições civis e religiosas, das famílias, da escola e da mídia para uma educação para os valores, sobretudo, os valores da vida, da saúde e da pessoa. Não se pode vencer o consumo das drogas de abuso alimentando uma cultura hedonista, individualista e desprovida de solidariedade e valores transcendentes. Sem o cultivo do sentido da santidade e da inviolabilidade e transcendência da vida na família e na escola, a vida descamba para a desordem e o desespero1.
Por outro lado, não se pode continuar a combater as causas de todo o mal-estar social apelando para a integração afetiva, a co-presença educadora dos pais na família e caminhar as políticas em uma direção diferente que favoreça a desagregação e a dissolução dos compromissos conjugais e familiares. Não se pode empregar na luta contra a droga o mero controle do cotidiano, sem vinculá-lo às motivações de amplo fôlego que se inspiram nos valores da vida, da responsabilidade e da solidariedade em uma óptica do divino que está no homem, o Homo sacer(1.
A vida do Homo sacer situa-se no cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade: a vida insacrificável e matável é a vida sacra. A separação entre humanitário e político, hoje vivida, é a fase extrema do descolamento entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. O humanitário separado do político não pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra sobre o qual se baseia a soberania, e o campo, isto é, o espaço puro da exceção, é o paradigma biopolítico para o qual ele não consegue encontrar solução13.
No imaginário social, político e midiático do mundo ocidental, o paradoxo estabelecido entre culto ao hedonismo e ao homem sagrado transcendental, assim como o paradoxo entre a integração familiar e o estímulo ao descompromisso conjugal, interferem negativamente no avanço para a mudança no painel global estabelecido pela droga pela desvalorização da inviolabilidade da vida humana.
Logo, a erradicação dos conflitos relacionados à droga consubstancia-se na ausência de motivações frágeis, pontuais e egoístas de pessoas, no plano individual, e de Estados-nação, no plano coletivo; e no alvorecer de uma dimensão ética global, na qual o Homo sapiens, intelectivo, não pode ultrapassar o Homo sacer, para não profanar sua divindade.
Imersos nessa discussão ética, alguns desafios devem ser vencidos na atenção integral à saúde do adolescente em seus aspectos operacionais, tais como: o reconhecimento de suas necessidades de saúde específicas; uma atuação da equipe de enfermagem sobre a saúde do adolescente com enfoque na família; além das questões éticas na atenção a essa fase da vida.
Os referenciais para a avaliação das questões éticas na atenção à saúde do adolescente contemplam o desenvolvimento moral do adolescente e da equipe de enfermagem; a capacidade cognitiva; a autonomia e os valores do adolescente, dos profissionais e da família7.
O adolescente, no que diz respeito à tomada de decisão, é visto de maneira distinta, de acordo com a maturidade moral, a maioridade sanitária e a capacidade jurídica. Ele é competente para decidir sobre sua saúde, se compreender as informações recebidas; analisar as consequências das possíveis escolhas; e julgar as informações de acordo com os seus valores, crenças e projetos7.
Deste modo, as questões éticas do adolescente estão relacionadas com a sua interação e capacidade de tomada de decisão sobre o cuidado prestado pelo enfermeiro e sua equipe, sofrendo adequações em decorrência das transformações cognitivas e comportamentais por ele vividas e subsidiadas por valores morais e competência. De igual modo, a abordagem da equipe de enfermagem ampara-se nos documentos técnico/científicos, ministeriais e jurídicos.
Imerso na configuração de sua identidade, muitas vezes vivendo situações dramáticas, o adolescente precisa ser acolhido na saúde coletiva, de modo que as ações de enfermagem devem estar pautadas por um processo que ofereça espaço para manter diálogo, tanto com o grupo quanto com o enfermeiro, enquanto educador para o auto-cuidado. É fundamental que o enfermeiro que trabalha com essa fase da vida em sua prática cotidiana atente para a importância da atenção à saúde em uma perspectiva integral, considerando não apenas as transformações físicas dos adolescentes, mas também seus anseios enquanto indivíduos em maturação5,10.
Na adolescência, são fundamentais as reflexões, por parte do enfermeiro, acerca do sigilo profissional e da real autonomia do adolescente, em função da dependência química, que pode indicar condição clínica comprometida e alterar sua competência em decidir sobre o tratamento de recuperação. Quanto maior o grau de dependência química, mais afetada estará a tomada de decisão consciente e, por conseguinte, a autonomia do indivíduo.
O enfermeiro é um educador para a conscientização dos agravos do uso das drogas para a saúde, deve respeitar e cuidar da humanidade, priorizando o trabalho de prevenção, em uma atenção capaz de ultrapassar os estabelecimentos de saúde. Para isso, precisa intervir junto a instituições para promover a saúde dos adolescentes e prevenir o uso de drogas lícitas e ilícitas; atuar com outras profissões da saúde e instâncias sociais; sensibilizar para as causas e consequências do uso de substâncias psicoativas. Nosso desafio reside em desenvolver atividades educativas e de conscientização que recobrem a valorização do sentido da vida por esses adolescentes14,15.
Neste sentido, o enfermeiro deve atuar com uma abordagem ao adolescente usuário de drogas pautada na integralidade e na ética, compreendendo-o como pessoa integrada em uma conjuntura social, familiar e educativa. Essa abordagem, que considera a subjetividade desse indivíduo em maturação e em uma condição de fragilidade pessoal e moral, causada pelo uso da droga, deve envolver família, escolas, instituições de tratamento reabilitador e comunidade.
Como educador, o enfermeiro deve priorizar a promoção da saúde do adolescente em uma perspectiva emancipatória que ressalta a sua corresponsabilidade e participação na luta e prevenção do uso de drogas. Para exercer esse papel abrangente, é necessário articular a intersetorialidade e a transdisciplinaridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O consumo de drogas por adolescentes precisa ser compreendido em sua totalidade, considerando aspectos sociais, econômicos, culturas, familiares e éticos. Nesse sentido, o presente estudo constatou que a responsabilidade por esses indivíduos não deve ser atribuída apenas ao Estado ou à família. A dependência de substâncias psicoativas entre os adolescentes é um sério problema de saúde pública na contemporaneidade, associando-se e agravando outros conflitos dessa fase, tais como violência, delinquência, gravidez não planejada, sexo inseguro e disseminação de DST/AIDS.
Para o combate da expansão das drogas deve haver um intercâmbio entre os mais variados setores da sociedade, os quais possam promover ações no campo da prevenção e promoção da saúde por meio de políticas públicas; da colaboração internacional entre países com a finalidade de promover uma dinâmica capaz de controlar as redes internacionais que distribuem os entorpecentes por todo o mundo; e o amparo a famílias que enfrentam esse tipo de problema com seus jovens.
Nesta perspectiva, a reflexão acerca da abordagem ética da enfermagem na atenção a adolescentes usuários de drogas lícitas e ilícitas é salutar para o auxílio a uma conscientização ou ao desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de superar possíveis entraves encontrados por profissionais dessa categoria diante de questões complexas envolvendo o uso de drogas. Nessa abordagem ética, sobressai o resgate de valores morais e pessoais e a competência do adolescente para decidir sobre seu tratamento de recuperação, envolvendo a intersetorialidade e a transdisciplinaridade.
REFERÊNCIAS