Volume 9, Número 2, Abr/Jun - 2005
ARTIGOS DE PESQUISA
Cuidado e solidariedade: São Francisco de Assis e a enfermagemª
Attention and solidarity: San Francisco de Assis and the nursing
Cuidado y solidaridad: San Francisco de Assis y la enfermería
Ana Paula Costa AlvesI; Fábio Assis de Sousa MoreiraII; Osnir Claudiano da Silva JúniorIII
IAluna do 6º período do curso de graduação da EEAP/UNIRIO. Membro do Laboratório de Pesquisa de História da Enfermagem (LAPHE). Bolsista PIBIC/CNPq
IIAluno do Curso de Especialização nos moldes de Residência da EEAP/UNRIO no Instituto Nacional de TraumatoOrtopedia (INTO) - Rio de Janeiro
IIIProfessor Adjunto do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAP/UNIRIO. Doutor em Enfermagem. Pesquisador do LAPHE. Orientador
RESUMO
O objeto deste estudo é a idéia da solidariedade franciscana como fundamento para a Enfermagem entendida como profissão de ajuda ao ser humano em suas necessidades biológicas, psicológicas e sociais.
OBJETIVOS: Identificar as concepções de solidariedade desenvolvidas por São Francisco, correlacionar essas concepções com o cuidado e analisar a dimensão de sua obra como um elemento inspirador para a enfermagem.
METODOLOGIA: Estudo teórico, de natureza qualitativa do tipo histórico-social, desenvolvendo-se a partir de análise bibliográfica no conjunto da obra de São Francisco de Assis e na literatura sobre esse mito da cristandade.
RESULTADOS E CONCLUSÕES: O cuidado prestado por São Francisco, alicerçado na essência do ser humano, e sedimentado em todo o movimento franciscano, confirma a idéia da solidariedade como fundamento para o cuidado e para a Enfermagem. Nesse sentido, as contribuições do personagem em questão ultrapassaram as fronteiras da Idade Média e perduram até os dias atuais.
Palavras-chave: História da Enfermagem. Idade Média. Solidariedade.
ABSTRACT
The study's object is the idea of Franciscan solidarity as a basis for the Nursing that can be understood as a profession of human support in their biological, psychological and social necessities.
OBJECTIVES: To identify the conceptions of solidarity developed by San Francisco, correlate those conceptions with care, and ot analyze the dimension of his workmanship as an inspired element for Nursing.
METHODOLOGY: There is an abstract study concerning qualitative method of research about the social-historic type. It has developed from bibliographical analysis in the set of the workmanship of San Francisco de Assis and in literature on this myth of the Christianity.
RESULTS AND CONCLUSIONS: The care provided by San francisco consolidates the essence of human beings, and stablishes all the Franciscan's movements to confirm the idea of solidarity as a basis for the care and the Nursing. This way, the contributions of the personage mentioned, has exceeded the borders of the Middle Age and this contributions last so far.
Keywords: Nursing History. Middle Age. Solidarity.
RESUMEN
El objeto de este estudio es la idea de la solidaridad franciscana como fundamento para la Enfermería comprehendida como profesión de ayuda al ser humano en sus necesidades biológicas, psicológicas y sociales.
OBJETIVOS: Identificar las concepciones de solidaridad desarrolladas por San Francisco de Assis, correlacionar esas concepciones con el cuidado y analizar la dimensión de su obra como un ingrediente de inspiración para la Enfermería.
METODOLOGÍA: Estudio teórico, de naturaleza cualitativa del tipo histórico-social, desarrollándose por medio de análisis bibliográfico en el conjunto de la obra de San Francisco de Assis y en la literatura a cerca de esa leyenda de la cristianidad.
RESULTADOS Y CONCLUSIONES: El cuidado prestado por San Francisco, cimientado en la esencia del ser humano, y sedimentado en todo el movimiento franciscano, confirma la idea de la solidaridad como fundamento para el cuidado y para la Enfermería. En esa dirección, las contribuiciones del personaje en tema ultrapasaron las fronteras de la Edad Media y perduran hasta los días actuales.
Palabras clave: História de la Enfermería. Edad Media. Solidaridad.
INTRODUÇÃO
São Francisco de Assis é apresentado no livro "História da Enfermagem" de Waleska Paixão (1979), pioneira na pesquisa e difusão da História da Enfermagem no Brasil1, como precursor da Enfermagem moderna. Francisco Bernadone viveu entre 1182 e 1226 na Itália, uma região dividida em várias unidades políticas independentes entre si. Após o Congresso de Viena (1815), passou a ser dominada por austríacos, franceses e pela Igreja Católica. A unificação completa, da Itália que conhecemos hoje, se daria bem mais tarde, em 1870, após as cidades de Roma e Veneza aderirem à unificação.
Localizada ao norte da Itália, mais precisamente na parte baixa da encosta do Monte Subásio, a comuna de Assis, murada e com portões, era uma das mais antigas aldeias e fora nominalmente cristã desde o século II, havendo sido conquistada em 1160 pelo Imperador Romano Frederico Barbarroxa, que governava as regiões que hoje conhecemos como Alemanha, Áustria, Suíça, França (metade de suas terras), Holanda e Itália (com exceção dos Estados Papais). No entanto, o povo de Assis não se submeteu de bom grado, e logo explodiu revolta aberta, dominada em 1174 pelo príncipe-bispo alemão Cristiano de Mains2.
Na Itália Medieval, assim como em toda a Europa, formou-se, como conseqüência do desenvolvimento demográfico e econômico, um poderoso movimento de urbanização. Atrelado a esse movimento, entretanto, estavam as condições miseráveis em que viviam os cidadãos de Assis. É bem verdade que cada um desses cidadãos era categorizado de acordo com sua importância social, a saber: os de condição superior - essencialmente os nobres - eram chamados de maiores, os de importância média eram os mediani e os denominados minores eram aqueles de categoria inferior. Essa divisão perdurou por quase dois séculos.
A violência estampada no cotidiano refletia as difíceis condições a que quase todos estavam submetidos, principalmente as mulheres. Era comum a violência contra a mulher, e somente as mulheres nobres ou membros da corte do imperador podiam recorrer aos tribunais.
A dor e a morte prematura eram tomadas com naturalidade. "A maioria dos recém-nascidos não passava dos primeiros meses, e a maior parte dos sobreviventes não chegava à adolescência"2:30. Não existiam antisépticos e grande parte das enfermidades era tratada com algumas ervas. Noções básicas de higiene não faziam parte do cotidiano europeu, não havia preocupação com a água que se ingeria, e muito menos esgotos sanitários. Os alimentos, devido a um armazenamento inadequado, se deterioravam rapidamente. Pequenas infecções, gripe e diarréia, rapidamente se tornavam graves. Epidemias deixavam os adultos vulneráveis. Havia grandes surtos de pneumonia, febre tifóide, tuberculose, varíola, lepra e inúmeras outras doenças. Cabe destacar que a posição geográfica da Itália favorecia a grande circulação de mercadores do Oriente, norte da África e Europa Ocidental, talvez essa seja a origem da maioria dessas enfermidades.
Em Assis, assim como em toda Europa, todos os que tinham alguma deformidade desfigurante eram considerados leprosos e não podiam entrar nas cidades, a não ser para pedir esmola ou comida e, ainda assim, essas pessoas tinham que tocar uma sineta ou matraca de alarme, de cujo som quase todos fugiam. Muito já se escreveu sobre a origem e existência da hanseníase, por outro lado, muitos desses escritos são citações de fontes descrevendo a moléstia sem os seus aspectos peculiares. Nos trabalhos de Hipócrates (467 a.C.), não há referência a qualquer condição que se assemelhe à doença. Admite-se que foram as tropas de Alexandre, o Grande, quando voltaram à Europa, depois da conquista do mundo então conhecido, que trouxeram soldados contaminados com a doença nas campanhas realizadas na Índia (300 a.C.). Essas informações são de difícil comprovação. A origem da hanseníase, até hoje, é um assunto polêmico no meio científico. A Bíblia, por exemplo, é outra fonte de dados sobre a existência da hanseníase entre os judeus.
Cabe-nos um destaque especial à hanseníase, pois se trata de uma doença que trazia, como conseqüência, uma forte exclusão social, o que a torna diferente de outras moléstias da época. Insignificantes, os leprosos faziam parte do conjunto dos minores devido ao não reconhecimento de sua força de transformação social. Os leprosários eram verdadeiros depósitos de restos humanos, com péssimas condições de higiene e poucos recursos, devido à força cultural que a doença exercia, onde se acreditava que tal patologia era uma espécie de castigo divino. Viviam de algumas doações, mas nem sempre supriam suas necessidades e no inverno rigoroso muitos morriam de frio, e a fome era uma constante.
Um importante fator a considerar no presente contexto é o grau de dependência desses indivíduos e as condições em que viviam. Expostos e humilhados, eram tratados como marginais. Desconfiados e com comportamento introvertido, uma simples tentativa de aproximação era motivo de medo e fuga.
Precisamos entender o contexto em que se insere Francisco Bernadone para podermos evoluir num processo de intuição e discernimento que nos permita isolar alguns dos fatos ocultos sob as formas antigas.
Nesse sentido, o objeto deste estudo é a idéia da solidariedade franciscana como fundamento para a enfermagem entendida como profissão de ajuda ao ser humano em suas necessidades biológicas, psicológicas e sociais. Para este estudo foram eleitas as seguintes questões: 1. Qual a dimensão da solidariedade na vida e obra de São Francisco de Assis?; e 2. Qual a relação entre a vida e a obra de São Francisco de Assis com a Enfermagem? E os objetivos do estudo são: 1. identificar as concepções de solidariedade desenvolvidas por São Francisco de Assis; 2. correlacionar essas concepções com o cuidado e 3. analisar a dimensão da obra de São Francisco de Assis como um elemento inspirador para a Enfermagem.
METODOLOGIA
Metodologicamente, trata-se de um estudo teórico, na perspectiva de Tachizawa e Mendes3, de natureza qualitativa do tipo histórico-social, desenvolvendo-se a partir de análise bibliográfica no conjunto da obra de São Francisco de Assis e na literatura sobre este mito da cristandade, em busca da idéia da solidariedade na vida e obra de São Francisco de Assis e como inspiração para a Enfermagem.
Francisco foi o homem que nos inspirou o desejo de fazer dele um objeto de história. Na verdade, o que pudemos constatar, no período de seleção de material, foi um quantitativo considerável de biografias superficiais e com certo teor de romantismo, o que dificultou o processo de seleção. Iniciamos a busca pelos prefácios dos livros de Donald Spoto e Jacques Le Goff, ambos com um comprometimento com a qualidade histórica das biografias. Para a compreensão da noção de cuidado, utilizamos as contribuições de Leonardo Boff, autor contemporâneo, e de uma obra de Florence Nightingale4, considerada a fundadora da enfermagem moderna.
RESULTADOS
Francisco de Assis e o cuidado do outro
Para começarmos a compreender Francisco, precisamos enxergá-lo tanto quanto possível além de nossos conceitos modernos, e partir do princípio que se trata de um italiano medieval, um homem cuja realidade era bem diferente da nossa e, portanto, dificilmente encontraremos uma resposta sintética à questão do "ser enfermeiro", pois Francisco não se anunciava assim, e julgamos discutível vê-lo como tal. Mesmo porque a Enfermagem Moderna nasce em 1860, com Florence Nightingale, após a criação da Escola de Enfermagem no Hospital St. Thomas - Inglaterra.
Nascido na região do vale de Espoleto, por volta de 1182, filho único de um próspero casal de comerciantes, o jovem Francisco Bernadone cresceu em meio às grandes transformações da Idade Média, marcada não somente pela transição da economia feudal, mas certamente por um avanço técnico significativo da sociedade medieval.
Ainda como criança, Francisco freqüentou a escola da Igreja de San Giorgio. A escola oferecia uma educação irregular e informal, sob a tutela de um padre residente. As aulas não tinham horários diários fixos e eram ministradas no pórtico da igreja. O jovem de Assis aprendeu latim suficiente para recitar o Padre-Nosso e o Credo na missa. Tinha noções elementares de aritmética e a Bíblia era, naturalmente, o texto medieval básico para toda a instrução nas universidades e nas escolas paroquiais, onde desempenhava o papel de instrumento de alfabetização.
O principal objetivo da escola era de introduzir as mais poderosas idéias e imagens às crianças cristãs de Assis, com o propósito de se tornarem futuros grandes guerreiros nas Cruzadas. "O matador de dragões e os antigos santos eram emblemas de romance, cavalheirismo, coragem e generosidade, e para os jovens cristãos eram não somente modelos de conduta, mas também intercessores celestes"2:52.
As Cruzadas foram expedições empreendidas pelos cristãos do Ocidente para libertar do domínio muçulmano o Santo Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Mas foram, ao mesmo tempo, uma forma de aliviar as pressões demográficas que ameaçavam destruir o feudalismo.
A crise do sistema feudal refletira-se na cultura, acentuando o sentimento religioso. A sociedade medieval era essencialmente religiosa. Sendo incapaz de compreender e encontrar cientificamente os meios de superação da crise, interpretou-a de um ponto de vista religioso. Assim, fiel ao sentimento religioso, a sociedade procurou, nas Cruzadas, uma possível solução para seus problemas. Porém, a religião não explica por si mesma este movimento. As Cruzadas teriam sido impossíveis sem a crise do sistema feudal, que marginalizou a mão-de-obra militar, indispensável à realização das campanhas militares.
Mas não se pode ignorar o aspecto religioso das Cruzadas. A espiritualidade e o sentimento religioso do homem medieval eram muito fortes. Ele era antes de tudo um fiel servidor de Deus e da Igreja. E se as Cruzadas representavam para ele uma satisfação material, representavam também o cumprimento de uma obrigação religiosa. Combater o infiel muçulmano era uma ação santa e representava a possibilidade de salvação eterna, garantida pelas indulgências oferecidas pela Igreja aos cruzados.
Para a Igreja Romana, as Cruzadas se configuravam como um instrumento de expansão do Cristianismo, do estabelecimento da supremacia do Papado sobre o Império e da expansão de sua influência religiosa, por meio da conquista dos locais santos da Ásia Ocidental5.
Por volta de 1194, com 12 anos de idade, Francisco é retirado da escola pelo seu pai, Pedro Bernadone, para viajar e ensiná-lo o ofício de comerciante.
Em 1206, aos 24 anos, deu-se início ao processo de conversão, isolando-se do convívio social. A conversão foi uma árdua tarefa de toda uma vida, e não efeito completo de um único momento, e ela implica em momentos isolados de incandescência, porém, em última análise, é um projeto em desenvolvimento. Essa conversão não tem um caráter institucional, não se trata de abraçar uma religião, e sim um despertar de uma espiritualidade, podemos dizer que se trata de uma adoção radical e singularmente pessoal de uma nova vida. "O decisivo não são as religiões, mas a espiritualidade subjacente a ela. É a espiritualidade que une, liga e re-liga e integra. Ela e não a religião ajuda a compor as alternativas de um novo paradigma civilizatório"6:21.
Por fim, aderiu à religião cristã. Não demorou muito para atrair diversos seguidores, mesmo com sua rigorosa forma de vida religiosa, que tinha como fim seguir literalmente o que estava escrito nos evangelhos, os ensinamentos de Cristo.
Francisco que tinha enorme repulsa aos leprosos, como ele próprio descreve em seu testamento final:
O Senhor deu a mim, irmão Francisco, essa forma de penitência, pois quando eu vivia em pecado, parecia-me demasiadamente penoso ver os leprosos. [Porém depois] o próprio senhor me levou para junto deles, e eu demonstrei compaixão.2:102
Dedicou-se aos cuidados com os leprosos, ajudando-lhes no banho, levando palavras de conforto, afagando-lhes as feridas do corpo e da alma, dedicava boa parte do tempo à reconstrução de igrejas abandonadas e nos leprosários onde buscava manter os doentes minimamente limpos e confortáveis; zelava pela higiene do local e auxiliava aqueles que não conseguiam se alimentar. Gostava de contar os méritos de Cristo e de como Deus era benevolente.
Florence Nightingale,4:116 no seu livro "Notas Sobre Enfermagem," destaca a importância desse tipo de atenção ao enfermo:
Você não calcula como o doente que mantém sua capacidade intelectual, mas com pouco poder de execução, deseja ouvir contar sobre ações meritórias, uma vez que está incapacitado de delas participar.
Assim fazia Francisco, impregnado pelo Evangelho, seguia através da compaixão o exemplo do Cristo.
Francisco não era um teórico da vida espiritual. Jamais falava de Deus a não ser em termos de experiência, porque era testemunha de um Deus vivo e atuante. Falava somente daquilo que conhecia, ouvia e sentia.2:21
Francisco de Assis abraçou, como ele costumava dizer, a irmã pobreza, e, em praça pública, renunciou aos bens para grande decepção de seu pai, que via no seu mimado filho um futuro próspero na carreira de comerciante. Agora dependia da misericórdia de Deus para cada momento, alcançando assim, de acordo com o que acreditava, o sentido mais profundo da pobreza de espírito.
Além disso, cultivou costume extremo de mortificação, com jejuns prolongados e alimentação insuficiente e logo desenvolveu uma gastrite crônica, que o iria acompanhar até o final dos seus dias, além dos surtos recorrentes de malária. Mais tarde confessou que pecara grandemente contra o "irmão corpo", e que isso talvez fosse de se esperar em um convertido jovem com seus 20 anos.
Fervoroso, Francisco seguia pregando o evangelho pelo qual se apaixonou, e o fez mudar radicalmente de vida. Chamava todas as criaturas de irmãos e irmãs, pois tinha uma profunda admiração por tudo que foi criado por Deus. Não demorou muito para encontrar o seu primeiro convertido, "um homem piedoso e simples", a única referência sobre ele encontrada. Depois um homem rico, cujo nome era Bernardo Quintavalle, que a pedido de Francisco vendeu todos os seus bens e entregou aos pobres, e assim foi, até formarem 12, uma alusão aos apóstolos. Francisco não se colocava na condição de Cristo, mas sim de um apóstolo, e seguiam em dupla pregando pelas cidades adjacentes. O bispo de Assis não gostou muito da idéia dos jovens. Pressionado, Francisco decide ir com os 11 irmãos a Roma e pedir ao Papa Inocêncio III que aprovasse a sua conduta e a dos seus irmãos.
O Papa Inocêncio III, em 1209, aprovou a regra nada formal que Francisco e seus frades levaram até Roma. Segundo Le Goff,7:74 Francisco escreveu "um simples formulário composto de algumas frases evangélicas orientando a vida e o apostolado dos irmãos". Não se sabe muito sobre essa regra, a única coisa que se sabe é que se tratava de uma norma muito rigorosa.
O Papa aprovou o texto que Francisco lhe submetia. De forma cautelosa, abençoou-os verbalmente. Com uma certa desconfiança, o Papa se despediu de Francisco e seus irmãos dizendo que, quando o Senhor todo Poderoso os multiplicassem em número e em graça, eles poderiam voltar alegremente a ele, o papa, que ele os concederia mais favores e lhes confiaria, com uma confiança maior, maiores missões7.
A visita ao Papa pode ser considerada um marco que mostra a necessidade que os Franciscanos tinham de estar no mundo.
Anos mais tarde, em 1219, a fraternidade contava com mais de três mil frades que pediam a elaboração de uma Regra formal. Francisco não gostava dessa idéia, pois essa estruturação exigia líderes, e a organização, talvez inevitavelmente, gera conflitos de poder. Francisco sempre dizia: "nenhum irmão tenha poder ou domínio algum, máxime entre si... mas quem quiser ser maior dentre eles, seja ministro e servo de todos"8:115.
No final de 1221, depois de rejeitadas diversas versões de uma Regra pelo conjunto da fraternidade, Francisco compôs um conjunto de normas que ele acreditava refletir a opinião dos frades, o que mais tarde o primeiro biógrafo de Francisco, Tomás de Celano, chamaria de "primeira regra". Esta também era composta principalmente de citações bíblicas e aconselhamentos para uma vida virtuosa, como a de 1209. Essa Regra foi denominada Regra Não-bulada (ou não aprovada pela bula papal).
Na verdade, a Primeira Regra nunca foi aprovada pela fraternidade, pois Francisco manteve a severidade de seus costumes primitivos, mas não acrescentou códigos disciplinares, como castigos, punições, o que e quando rezar, entre outros. Com isso, a regra lhe foi devolvida para que pudesse reescrevê-la mais uma vez.
Em 1223, o papa Honório III aprova a chamada Segunda Regra ou Regra bulada (com bula papal), a Regra definitiva, ainda hoje em vigor. Os franciscanos passaram a ser uma ordem formal dentro da Igreja: a Ordem dos Frades Menores. Este documento certamente não foi escrito por Francisco (mais tarde, cardeal Ugolino reconheceu ter colaborado com a redação), uma vez que, em lugar do estilo simples, a Regra era bem escrita e polida, além de ser mais curta, melhor organizada e mais precisa que a primeira.
Desprezando até as mais simples vestimentas, Francisco usava somente uma túnica esfarrapada de pano com capuz, uma cueca curta e um pedaço de corda amarrada para servir de cinto. Só não caminhou descalço porque os amigos lhe suplicaram para que protegesse os pés devido ao inverno rigoroso. Para Spoto,2:115 "Não se tratava de um uniforme; ele desejava simplesmente vestir-se como um homem muito pobre".
A simplicidade de Francisco representava uma reprovação implícita ao luxo e privilégio que definia grande parte da vida eclesiástica. Um verdadeiro exemplo de não conformismo com as atitudes da Igreja. Existiam movimentos que reprovavam tais atitudes da Igreja, porém Francisco não quis se juntar a nenhum deles, na verdade ele só desejava viver radicalmente o Evangelho.
Mais tarde, procurado por Clara, uma filha de nobres da cidade de Perugia, Francisco recebeu o pedido para aceitá-la na Ordem dos Irmãos Menores. Com medo da violência e da repercussão que isso poderia acarretar à Ordem, ele resolveu elaborar uma nova Ordem destinada às mulheres que desejavam seguir a filosofia franciscana. Foi então criada a Segunda Ordem, ou Ordem das Clarissas, onde as mulheres viviam enclausuradas e se dedicavam às orações e trabalhos manuais. Mesmo assim, cooperavam no tratamento aos doentes que as procuravam, dando-lhes remédios e fazendo-lhes curativos. Para Paixão,9:41 "Só isso seria bastante para imortalizar S. Francisco na História da Enfermagem". Fundou também a Terceira Ordem (ou Ordem Terceira) para aqueles que se identificavam com os ideais franciscanos, mas não pretendiam fazer os votos de obediência, pobreza e castidade exigidos pela Ordem dos Irmãos Menores. A Terceira Ordem contribuiu, de forma significativa, no cuidado aos enfermos e, seu valor foi enorme para o progresso da Enfermagem9. Visitavam todos os dias os hospitais, cuidavam das feridas e asseavam os enfermos como forma de penitência. Pouco se sabe se eles tinham ou não alguma técnica nos cuidados, mas suas contribuições foram de grande valia, pois havia um descaso muito grande com o cuidado em si.
Em 1224, nos dois últimos anos da vida de Francisco, com o corpo bastante debilitado, devido às privações que ele mesmo se impusera, recebeu os estigmas (chagas da crucificação) nas montanhas de Alverne. Voltou a se dedicar ao trabalho com os leprosos. Em 1226, em Porciúncula, aos 44 anos, se despede do frei Masseo, dizendo: "Io mi parto da voi com la persona, ma vi lascio il mio cuore. Quer dizer, eu me aparto de vós como pessoa, mas vos deixo o meu coração."6:169
Francisco, um ícone da solidariedade
O movimento das Cruzadas (1095 - 1270) teve uma contribuição importante devido à criação de ordens religiosas e militares para o acolhimento dos doentes feridos nas batalhas rumo ao Oriente. O Movimento Franciscano não foi o idealizador de ordens religiosas envolvidas na atenção ao cuidado dos enfermos, também não tiveram isso como propósito. A proposta Franciscana se insere mais nas questões do anticonsumismo, a não-violência e na luta contra a exclusão social, fundamentados no evangelho.
O acolhimento dos excluídos foi a mola mestra de todo o trabalho de Francisco. O cuidado ao ser humano sem distinção de classe era um feito raro para a Idade Média. É preciso entender a sua vida como um italiano medieval, a partir de um quadro claro das pressões sociais que agiam sobre seu comportamento individual no seu novo paradigma.
A tradição Ocidental percebe Francisco como figura exemplar de grande popularidade. Para Boff,6:169 "com efeito, o coração de Francisco significa um estilo de vida, a expressão genial do cuidado, uma prática de confraternização e um renovado encantamento pelo mundo". É comum encontrarmos as marcas de Francisco na literatura, na arte e na história. Destacam-se os afrescos de Giotto, os filmes de Frederico Fellini e a ópera Saint François d'Assise, do grande compositor francês Olivier Messiaen. A cidade de Los Angeles nada mais é do que uma abreviatura do nome que foi dado pelos primeiros colonos: Nuestra Señora la Reyna de los Angeles de Porciúncula (Nossa Senhora Rainha dos Anjos de Porciúncula). Lugar da morte de Francisco. Sem contar com as cidades de São Francisco e Santa clara, ambas na América do Norte.
No Brasil, a grande popularidade de São Francisco de Assis resultou, entre outras coisas, na criação de hospitais franciscanos e do Hospital Escola São Francisco de Assis, antes denominado Asylo da Mendicidade.
A escolha do nome de São Francisco de Assis para patrono do Asylo da Mendicidade, associa a instituição ao mito cristão da pobreza, e busca recuperar um pouco de sua positividade mística e do valor ao socorro à ela dado; entretanto, não mais provido pela Igreja, mas pelo Estado.10:56
Para a Enfermagem, cabe destacar que foi no Hospital Escola São Francisco de Assis que foi implantada a Enfermagem Anglo-Americana, fruto da Reforma Carlos Chagas, em 1923, e recuperado para os domínios da Escola em 198811.
É claro que muito antes do nascimento do Movimento Franciscano já existia o acolhimento, aos enfermos, por parte de grupos religiosos. "No século VI, os mosteiros, particularmente os beneditinos, mantinham escolas e pequenos hospitais onde se cultivavam plantas medicinais e se desenvolveram técnicas de socorro aos doentes"12:61. Entretanto, Francisco é um exemplo especial de dedicação ao cuidado do outro, particularmente dos excluídos, dos pobres, idosos e doentes, também da natureza e dos animais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Francisco foi um jovem rebelde, que tinha um grande amor pela vida e por todas as criaturas de Deus. Defensor da natureza, reverenciava tudo aquilo que se aproximava de Deus, chamando de Irmão. O jovem de Assis tinha um grande poder de resgatar a auto-estima dos minores, tratando-os com respeito, cuidando de suas feridas - do corpo e da alma. Sendo assim, a força do Movimento Franciscano refletia uma nova dimensão do cuidado. Para Boff,6:141 "o compromisso dos oprimidos e de seus aliados por um novo tipo de sociedade, na qual se supera a exploração do ser humano e a espoliação da Terra, revela a força política da dimensão-cuidado".
Na realidade, existe uma enorme complexidade em tentar entender os objetivos que ele almejava.
O que se opõem aos descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.6:33
Francisco se aproximava mais da ótica do cuidado, como essência do ser humano, devido à obstinação pelo seu novo estilo de vida, que visava se desnudar completamente dos apegos materiais.
A compaixão de Francisco para com os excluídos deve ser analisada de forma aprofundada. O voto de pobreza dos Franciscanos remete a uma visão igualitária, e não só traz a bandeira da luta contra o consumismo como também contra o ostracismo.
Francisco de Assis deixou para a Enfermagem um exemplo de atenção ao cuidado ao ser humano, cuidado esse que transcende a assistência ao corpo debilitado, fisicamente abalado pela enfermidade. É mais do que isso, é atender às necessidades daquele Ser que é Humano e como tal deve ser tratado, ou seja, corpo, mente, espírito. Mostrou que dificilmente evoluiremos sem que haja o respeito ao próximo, à natureza, isto é, dentro da sua concepção, sem que haja o respeito por todas as formas de vida do nosso planeta. E através do seu carisma, exemplo e esforço deixou uma grande contribuição no processo de construção da profissão enfermagem, com hospitais, asilos e escolas que levavam seu nome como forma de divulgação dos princípios e propósitos franciscanos, mantendo assim forte sua filosofia até os dias atuais.
REFERÊNCIAS
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7. Le Goff J. São Francisco de Assis. São Paulo (SP): Record; 2001.
8. Boff L. São Francisco de Assis: ternura e vigor. 8ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2000.
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10. Silva Jr OC. Do_Asylo da mendicidade ao Hospital Escola São Francisco de Assis: a mansão dos pobres. Rio de Janeiro (RJ): Papel Virtual; 2000.
11. Figueiredo NMA, Carvalho V, Santos IR. Na emergência das águas: as enfermeiras Anna Nery (re) tomam sua história - o caso do HESFA. Esc Anna Nery Rev Enferm 1997 jul:1(nº esp):43-51.
12. Figueiredo NMA. Práticas de enfermagem. São Paulo (SP): Difusão; 2002.
NOTA
ªEstudo desenvolvido no Laboratório de Pesquisa de História da Enfermagem (LAPHE) da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto(EEAP)/UNIRIO. Trabalho premiado com A Lâmpada - primeiro lugar - na 8ª Jornada Nacional de História da Enfermagem/12º Pesquisando em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.
Recebido em 19/05/2005
Reapresentado em 29/07/2005
Aprovado em 01/08/2005