Acessibilidade / Reportar erro

Educação permanente: discursos dos profissionais de uma unidade básica de saúde

Resumo

Objetivo:

Analisar os discursos dos profissionais de saúde acerca da Educação Permanente no cotidiano de uma unidade básica de saúde.

Método:

Qualitativo. Cenário: uma unidade básica de Belo Horizonte. Referencial: cotidiano de Agnes Heller com análise crítica de discurso. Entrevistas em profundidade com 25 profissionais.

Resultados:

Reciclagem, atualização, responsabilidade institucional, aprendizado contínuo, desacomodação e transformação, reveladas pelo vocabulário, interdiscurso, temporalidade, modalidade, avaliação e prática social institucional. Responsabilizam a instituição, mas valorizam a educação permanente para a transformação nos processos de trabalho e atenção aos usuários.

Considerações finais e Implicações para a prática:

A desacomodação proporciona ação-reflexão e mudanças na atenção aos usuários. Reciclar e atualizar relaciona readequação do profissional à atualização tecnológica, sem necessariamente provocar mudanças. Ampliar discussão com os profissionais sobre potência do cotidiano, para reconhecimento e valorização da educação permanente no cotidiano, como instrumento de mudança nas práticas sociais.

Palavras-chave:
Educação Permanente; Atenção Primária à Saúde; Gestão em Saúde; Aprendizagem

Abstract

Objective:

To analyze the speeches of health professionals about continuing education in the daily life of a basic health unit.

Method:

Qualitative study developed at a primary health care unit of Belo Horizonte, based on the theory of Agnes Heller's daily life with critical discourse analysis. In-depth interviews with 25 professionals were developed.

Results:

Recycling, updating, institutional responsibility, continuous learning, discomfort and transformation, revealed by vocabulary, interdiscourse, temporality, modality, evaluation and institutional social practice. Professionals blame the institution, but value continuing education for the transformation in work processes and attention to users.

Final considerations and implications for practice:

The discomfort provides action-reflection and changes in the attention to users. Recycle and update relates the professional's adaptation to technological updating, without necessarily producing changes. To expand discussion with professionals about daily potential, for recognition and appreciation of continuing education in daily life, as an instrument of change in social practices.

Keywords:
Education, Continuing; Primary Heath Care; Health Management; Learning

Resumen

Objetivo:

Analizar los discursos de profesionales de salud acerca de la Educación Permanente en el cotidiano de una unidad básica de salud.

Método:

Cualitativo. Escenario: una unidad básica de Belo Horizonte. Referencial: cotidiano de Agnes Heller con análisis crítica de discurso. Entrevistas en profundidad con 25 profesionales.

Resultados:

Reciclaje, actualización, responsabilidad institucional, aprendizaje continuo, desacomodación y transformación, reveladas por el vocabulario, interdiscurso, temporalidad, modalidad, evaluación y práctica social institucional. Responsabilizan a la institución, pero valoran la educación permanente para la transformación en los procesos de trabajo y atención a los usuarios.

Consideraciones finales e Implicaciones para la práctica:

La desacomodación proporciona acción-reflexión y cambios en la atención a los usuarios. Reciclar y actualizar relaciona readecuación del profesional a la actualización tecnológica, sin necesariamente provocar cambios. Ampliar discusión sobre potencia de lo cotidiano, para reconocimiento y valorización de la Educación Permanente como instrumento de cambio en las prácticas sociales.

Palabras clave:
Educación Permanente; Atención Primaria a la Salud; Gestión en Salud; Aprendizaje

INTRODUÇÃO

A educação permanente (EP) vem sendo adotada no setor saúde com a finalidade de se repensar metodologias e políticas que possibilitem mudanças nos comportamentos e condutas, a partir da integração e estruturação do conhecimento, resultando em novas maneiras de pensar. Entende-se que EP é um fenômeno social, multiprofissional, colaborativo e coletivo necessário para o desenvolvimento do trabalho em saúde.11 Figueiredo EBL, Silva APA, Abrahão AL, Cordeiro BC, Fonseca IA, Gouvêa MV. Efeito pororoca na educação permanente em saúde: sobre a interação pesquisa-trabalho. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018; [cited 2018 Aug 23]; 71(Suppl. 4):1768-73. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001768&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
A construção histórica, a partir de 1980, a discussão da EP voltou-se para o processo de trabalho com valorização das vivências e práticas dos sujeitos em ação, incentivando a problematização e a capacidade criativa, para a análise coletiva acerca dos problemas reais, em busca da transformação das práticas de saúde e construção de novos conhecimentos.

No Brasil, a Educação Permanente em Saúde apresenta-se como uma proposta de ação estratégica do Sistema Único de Saúde (SUS) para o desenvolvimento dos profissionais de saúde nos serviços. Nessa vertente, a aprendizagem se processa a partir da realidade vivida no trabalho e tem potencial para a transformação das práticas em saúde.

A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, instituída em 2004, ampara-se no pressuposto da aprendizagem como um exercício diário para a identificação não só das dificuldades e obstáculos, mas também das possibilidades de construção efetiva do cuidado qualificado, considerando a Educação Permanente em saúde , incorporada no seu cotidiano, o aprender e o ensinar.22 Bomfim ES, Oliveira BG, Rosa RS, Almeida MVG, Silva SS, Araujo IB. Educação permanente no cotidiano das equipes de saúde da família: utopia, intenção ou realidade? Rev Pesq Cuid Online [Internet]. 2017 Apr/Jun; [cited 2018 Aug 23]; 9(2):526-35. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/5464
http://www.seer.unirio.br/index.php/cuid...
Em 2007, foram introduzidas novas diretrizes e estratégias, considerando-se as especificidades regionais, as necessidades de formação e desenvolvimento para o trabalho em saúde.33 Moraes KG, Dytz JLG. Política de educação permanente em saúde: análise de sua implementação. ABCS Health Sci [Internet]. 2015; [cited 2018 Jun 1] 40(3):263-9. Available from: https://www.portalnepas.org.br/abcshs/article/view/806
https://www.portalnepas.org.br/abcshs/ar...

Apesar do aparato normativo, identificam-se vários desafios para a compreensão e a ação a respeito da educação permanente. Existe uma dificuldade conceitual no entendimento da educação permanente, como a visão da ação educativa não imbricada na práxis cotidiana, restrita a momentos formais instituídos, com priorização das questões técnicas.44 Campos KFC, Sena RR, Silva KL. Permanent professional education in healthcare services. Esc Anna Nery [Internet]. 2017; [cited 2018 May 1]; 4(21):e20160317. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_1414-8145-ean-2177-9465-EAN-2016-0317.pdf. DOI: 10.1590/2177-9465-EAN-2016-0317
http://www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_14...

Outros desafios são relacionados com a implementação de processos de ensino-aprendizagem não respaldados por ações crítico-reflexivas e participativas, assim como o não reconhecimento do potencial dos profissionais nas suas ações cotidianas, que informam e produzem EP. Frente a isso, observa-se que a EP vem acontecendo no cotidiano de maneiras e iniciativas diversas, assumindo várias formas, desde os modos mais tradicionais, em ações formais de ensino-aprendizagem, aos configurados em outros formatos não tradicionais, nas ações cotidianas que produzem conhecimento e podem induzem mudanças.

Sabe-se que os sujeitos devem estar implicados nessas mudanças. As equipes têm se movimentado para resolver os problemas, mas parecem não terem ainda consciência da dimensão singular do seu agir para esse processo, necessitando de investimentos em processos de EP. Acredita-se que a EP acontece no cotidiano nas suas diferentes formas de produção do aprendizado, formais e não formais, contribuindo para a mudança dos sujeitos nos serviços de saúde, podendo repercutir no modelo assistencial. Dessa forma, ao problematizarem a atenção à saúde, criam um campo potente para a transformação da prática, que ocorre com mais ou com menos intensidade, conforme as diferentes estruturas instituídas nos serviços. No entanto, as dificuldades relacionadas à concepção do que seja EP proporcionam o não reconhecimento e valorização do seu acontecimento no cotidiano.

Adota-se, para o estudo, o conceito de educação como aquela que deve considerar o homem capaz de mudar o mundo com sua inteligência e com sua ação, que age de forma crítica e ativa no processo de transformação da sociedade e do trabalho.55 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. La pedagogía crítica liberadora de Paulo Freire en la producción científica de la enfermería 1990-2017. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018; [cited 2018 Aug 20]; 71(Suppl. 4):1751-8. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-71672018001001751&script=sci_arttext&tlng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S003...
Logo, educação seria um processo social, um movimento de ação-reflexão humana para a transformação da realidade. Com isso, a EP, no cotidiano dos serviços de saúde, deve voltar-se para os sujeitos, em suas interpretações das normatizações contrapostas à realidade vivida que, na maioria, as subjetivam e produzem o cotidiano em direção ou não à sua superação.

Este artigo retrata resultados parciais de um estudo que busca analisar a educação permanente como dispositivo para a mudança do modelo de atenção, no cotidiano de uma unidade básica de saúde (UBS). Trata-se de pesquisa qualitativa ancorada no referencial teórico sobre o cotidiano, na vertente expressa por Agnes Heller.

Nesse contexto, para se conhecer como a EP tem possibilitado a transformação do modelo assistencial, assim como conhecer os movimentos no cotidiano da atenção primária à saúde na unidade básica de saúde, foi necessário indagar sobre os discursos presentes no cotidiano dos profissionais de saúde. Assim, questiona-se neste estudo: que discursos de educação permanente estão presentes no cotidiano dos profissionais em uma unidade básica de saúde? Como esses discursos se relacionam com a mudança da prática e modelos de atenção à saúde? O objetivo foi analisar os discursos dos profissionais de saúde acerca da Educação Permanente no cotidiano de uma unidade básica de saúde.

MÉTODO

Trata-se de estudo qualitativo ancorado no referencial de cotidiano de Agnes Heller. Essa autora afirma que a vida cotidiana é a vida de todo homem que está no palco dos acontecimentos e do desenvolvimento da vida, cujos dados primeiros são as atitudes diárias do ser humano. Com isso, alia-se a compreensão do desenvolvimento histórico e econômico da sociedade à consideração da heterogeneidade das ações e reações humanas na esfera cotidiana. O homem participa da vida com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, coloca todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias e ideologias, mesmo sendo condicionadas pela sociedade à qual pertence.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...

O homem se submete ao condicionamento pela sociedade para garantir a sua sobrevivência em seu meio. No entanto, a partir do momento em que é confrontado com novas experiências que fogem do cotidiano e suas repetições, pode experimentar uma ampliação do seu olhar proporcionada pela tomada de consciência, numa esfera ampliada para além do mundo que o cerca. Dessa forma, amplia seu discurso, suas práticas e relações sociais.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...

A mesma autora, para quem a vida cotidiana aparece como base de todas as reações espontâneas do homem em seu ambiente social, afirma que o homem deve caminhar para a busca da liberdade e autonomia em processos de subjetivação da realidade, superando o cotidiano.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
A liberdade e autonomia, no mundo cotidiano, são possibilidades de o sujeito interpretar o conteúdo das normas sociais, rejeitar algumas, aceitar outras ou, ainda, preferir outros valores, já que a vida cotidiana é carregada de alternativas e escolhas.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...

Nesse sentido, a prática discursiva, o texto e a prática social, integradas entre si, são produtos das relações sociais e das relações de poder. Assim, as práticas discursivas regulam as identidades sociais no que diz respeito aos valores, ideologias e crenças no cotidiano vivido.77 Resende VM, Ramalho VCVS. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Ling (Dis)curso-LemD, Tubarão [Internet]. 2004 Jul/Dec; [cited 2018 Aug 20]; 5(1):185-207. Available from: http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/307
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/...

Para a análise dos dados empíricos, adotou-se o referencial da análise crítica de discurso, na vertente inglesa. Esse referencial sustenta-se num modelo tridimensional para compreender a prática discursiva, o texto e a prática num quadro analítico para a análise dos eventos discursivos. Aposta-se que a análise das propriedades textuais deve estar integrada tanto à análise das relações sociais e das relações opacas de poder, quanto à ideia de que as práticas discursivas são reguladoras de identidades sociais e são espaços emergentes de valores, ideologias e crenças.77 Resende VM, Ramalho VCVS. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Ling (Dis)curso-LemD, Tubarão [Internet]. 2004 Jul/Dec; [cited 2018 Aug 20]; 5(1):185-207. Available from: http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/307
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/...

O cenário do estudo foi uma unidade básica de saúde localizada no Município de Belo Horizonte. A captação da realidade aconteceu, inicialmente, por observação participante periférica. Procedeu-se à realização de entrevistas em profundidade com 25 profissionais da unidade, que apresentavam mais de um ano de atuação na atenção básica e na Estratégia Saúde da Família, independente da categoria profissional (sete agentes comunitários de saúde - ACS, uma enfermeira, quatro médicos, seis técnicos de enfermagem, um dentista, um técnico de saúde bucal, uma auxiliar de saúde bucal, um assistente social, um terapeuta ocupacional, um agente de zoonoses e a gerente da unidade). A intenção era incluir a totalidade dos profissionais da unidade, mas houve recusa de quatro ACS, uma técnica de enfermagem e um enfermeiro. Todos os profissionais entrevistados assinaram o Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE).

As entrevistas foram realizadas na própria unidade, no período de 1º de novembro de 2017 a 08 de fevereiro de 2018 e versaram sobre o entendimento dos participantes a respeito da educação permanente em saúde, sua ocorrência no cotidiano, desafios e dificuldades. A gravação das entrevistas totalizou 21 horas, com duração média de 58 minutos cada entrevista.

O material foi transcrito na íntegra e codificado, com código alfanumérico composto pela letra T e números para a sequência de entrevista, considerando todos como trabalhadores de saúde. As entrevistas foram preparadas para a análise do discurso, utilizando-se a simbologia específica com elementos gráficos para indicar, por exemplo, interrupção da fala, truncamentos, incompreensão de palavras,88 Medeiros Z. Genres, multimodality, and literacies. Rev Bras Linguist Apl [Internet]. 2014 Jul/Sep; [cited 2018 Aug 6]; 14(3):581-612. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-63982014000300005&script=sci_arttext
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198...
entre outros.

Para a organização dos dados empíricos estabeleceu-se o seguinte caminho: leitura exaustiva das entrevistas, buscando nos discursos o seu conceito de EP enunciada pelos participantes. Em seguida, foram mapeadas as palavras-chave e demais elementos que remetiam à dimensão textual do discurso. A partir desse movimento, procedeu-se à identificação das categorias relativas à prática discursiva e prática social, conformando a análise tridimensional proposta por Fairchloug, sendo as categorias de análise informadas nos resultados deste estudo: vocabulário, temporalidade, prática social institucional, avaliação, modalidade e interdiscursividade.

O vocabulário refere-se à dimensão do uso da linguagem que envolve processos de produção, distribuição e consumo dos textos.77 Resende VM, Ramalho VCVS. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Ling (Dis)curso-LemD, Tubarão [Internet]. 2004 Jul/Dec; [cited 2018 Aug 20]; 5(1):185-207. Available from: http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/307
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/...
A interdiscursividade refere-se à articulação de discursos e à forma como são articulados. A temporalidade diz respeito à relação temporal envolvida no contexto social, que representa certas ações e modos de interação, evidenciando a transição das práticas entre espaços de tempo. A prática social situa o discurso numa perspectiva de poder como hegemonia e ideologia, com o uso de metáforas que identificam o modo como o mundo é percebido e a maneira como nos comportamos nele e nos relacionamos, de acordo com a experiência física e cultural. Por modalidade entende-se o julgamento sobre as probabilidades ou obrigatoriedades envolvidas, com escolhas intermediárias, com traços semânticos que marcam polos opositores, com possibilidades intermediárias de escolhas, podendo ser modalidades deônticas (envolvem obrigatoriedade) ou epistêmicas (envolvem comprometimento com a verdade). A avaliação inclui afirmações avaliativas, com juízo de valor e presunções valorativas do que seja desejável ou indesejável.77 Resende VM, Ramalho VCVS. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Ling (Dis)curso-LemD, Tubarão [Internet]. 2004 Jul/Dec; [cited 2018 Aug 20]; 5(1):185-207. Available from: http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/307
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/...

O projeto, do qual este artigo é um dos produtos, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, CAAE número 62614916.0.3001.510, com parecer da instituição coparticipante, número 1.952.027. Em todas as etapas do estudo, foram atendidas às orientações da Resolução nº 466/2012.

RESULTADOS

Ao serem indagados sobre o que é educação permanente, os entrevistados utilizaram uma série de vocábulos: cursos, reciclagem, treinamento, educação continuada, capacitação, aperfeiçoamento e atualização. Há, também, expressões que se reportam à educação voltada ao trabalho, aprendizado e processo contínuo.

Os profissionais associam educação permanente à reciclagem, num processo que deve acontecer continuamente. Assim, o discurso é textualmente marcado por modos adverbiais e temporais que sempre expressam continuidade (ir reciclando).

(01) Eu acho que a educação continuada, educação permanente, ela é importante para reciclagem do profissional... o profissional estar sempre apto a atender da melhor forma [...] acho que a chave do sucesso do serviço, né? Educação permanente é tudo, se a gente não tem educação permanente a gente deteriora nas relações com o outro, nas relações de trabalho e a gente se torna um produto, né, entre aspas, obsoleto. [...]Hoje mesmo eu tava, ontem mesmo, tava discutindo com o fulano que, por exemplo... hoje ele tá fazendo um curso de reciclagem da questão da raiva, da vacina antirraiva, que mudou o protocolo (T12).

(02) Bom, eu entendo que educação permanente... [para e pensa] é como se fosse uma reciclagem, né? Você aprendeu lá na escola e aqui você aprende na prática, mas você tem que ir se reciclando, se aprimorando, né? E se adequando aos novos ensinamentos, as coisas novas que chegam que, na realidade, pra mim ainda tenho um pouco de dificuldade, pode até ser como se diz, ficar... achar... de ficar com medo de não se adequar às coisas novas que estão chegando (T21).

(03) Muda porque recicla, né? Tira a gente da zona de conforto, quando você acha que tá tudo bem, que já aprendeu de tudo, no curso mesmo, a gente refaz alguns conceitos pra melhora do trabalho do bem coletivo (T01).

No excerto 01 o profissional representa a educação permanente por meio da metáfora chave do sucesso. Ao atribuir a condição de tudo, afirma que ela é indispensável nas relações que se estabelecem no trabalho.

Os enunciantes utilizam como sujeitos nas afirmações a gente para posicionar a equipe na educação permanente. Esse achado demonstra o reconhecimento dos sujeitos despidos da individualidade, marcando um discurso coletivo, de sujeito ampliado, dando a noção de conjunto nas relações de trabalho.

A desacomodação é um elemento que provoca a necessidade de EP, apresentada no discurso pela metáfora tira a gente da zona de conforto (excerto 03). No excerto 04, T22 entende também a EP como uma chamada para a saída do automático, fazendo com que o profissional atente para as mudanças que acontecem no serviço.

(04) Olha, durante o serviço, às vezes, a gente entra num estado automático, de responder coisas no automático. E eu vejo assim, a educação permanente como uma chamada para a SAÍDA DO AUTOMÁTICO, né? Muitas vezes, os conceitos mudam, mas, às vezes, a gente TÁ TÃO NO AUTOMÁTICO, que a gente tem noção daquilo, mas a gente não sabe, às vezes, como colocar, né? (T22).

O uso da metáfora estado automático evoca ações num processo de trabalho que independem da vontade consciente. Nesse contexto, a EP é um dispositivo que pode disparar estados não automáticos, num processo que depende da consciência para a atuação profissional. Nesse sentido, desacomodar é condição para se abrir ao novo e reciclar-se. A afirmativa categórica TÁ TÃO NO AUTOMÁTICO é seguida pela explicação de que, apesar do conhecimento, acaba por lançar mão da comodidade, utilizando-se das repetições de atitudes que são aceitas socialmente pela equipe e pelos usuários.

A acomodação gera o desestímulo, que aos poucos leva a um retorno ao cotidiano sem perspectivas, que é referido na perda da graça, no excerto 05. Temporalmente, indica um processo de perda gradual, vai perdendo, da atualização e da força no trabalho. A EP, identificada numa avaliação valorativa como importante para a reativação do ânimo, é evidenciada com a metáfora, gás.

(05) A gente vai ficando meio desestimulado. Então, a educação profissional... permanente, eu acho que ela traz pra gente, além da atualização, o gás... que, às vezes, a gente vai perdendo aos pouquinhos, perdendo a graça. Então, eu acho que é superimportante (T09).

A educação permanente é comparada também com o aprendizado formal, realizado por meio de cursos que proporcionam aperfeiçoamento e adequação às coisas novas (excerto 06). O substantivo coisas, no cotidiano da UBS, pode se referir a protocolos, a procedimentos, às novas orientações da gestão local, distrital e municipal e às demandas do atendimento em geral. Assim, há um tanto de coisa que precisa ser atualizada.

(06) O enfermeiro acompanhando junto com a gente no dia a dia... passando no caso, as coisas novas... e não só o enfermeiro também não... no caso a gente também tem que se atualizar... igual agora tá tendo, no caso da vacina, tá tendo esse curso aí de vacina que foi até com esse curso é que a gente tem visto o tanto de coisa que a gente tem feito e que já não é mais... [para de falar, faz gesto com os ombros indicando que não é mais praticado] (P17).

(07) Educação permanente? É... [fica me olhando] a gente tá sempre atualizando os protocolos, vacina, farmácia... [para e pensa] é tá sempre tendo curso pra gente poder atualizar, pra não ficar o atendimento, pro atendimento não ficar defasado (P18).

Os resultados indicam que é frequente entre os profissionais se referirem à EP como treinamentos, atualizações e capacitações, por meio de cursos de diferentes extensões. Nesse sentido, os enunciantes destacam os cursos como ferramenta de atualização, temporalizando sua oferta, que precisa ser contínua, pensando na evolução dos conhecimentos e formas de fazer. Modalizam o discurso ao afirmar a obrigatoriedade da atualização, tem que se atualizar.

O cotidiano é marcado por repetições que reproduzem uma regularidade de ações nos serviços. Nesse cotidiano, os cursos cumprem a função de romper coma rotina ao possibilitarem atualizações.

(08) É essa mudança mesmo... Porque qualquer curso que você faz, formou, bonitinho..., mas muda. Ano que vem já tem alguma coisa nova tanto na Medicina, quanto pra dentista, quanto para a Enfermagem... Então você tem que acompanhar... que você tem que evoluir, tem que acompanhar, ir se ajustando, né? Igual curativo, todo dia uma novidade, uma cobertura diferente, uma forma de conduzir diferente. Então se você não tem esse acompanhamento você fica defasado de informação (T17).

(09) Quando você pergunta assim de uma vez, a gente tem que pensar um pouquinho... Olha, o que eu entendo assim, de educação permanente, é uma atualização com os profissionais de acordo com a demanda que a gente vai visualizando no serviço. Então, assim, as dificuldades, os problemas, para potencializar os profissionais pra melhoria daquele atendimento (T15).

Acrescenta-se que o vocabulário e tempos verbais, nos enunciados dos participantes, informam temporalidade nas indicações de continuidade, assim como informam também modalidade nas afirmações positivas e categóricas (você tem que acompanhar, tem que evoluir), demonstrando a preocupação com o acompanhamento do novo conhecimento e das novas tecnologias aplicáveis no serviço de saúde.

(10) [...] e sempre os cursos de capacitação dentro da nossa área de abrangência. [...] É tudo aquilo que nos é passado, a gente tem o cuidado em estar praticando aquilo ali diariamente (T01).

(11) Tô sempre fazendo esses cursos porque eu acho que também é uma outra forma de adequar. E tenho passado pros colegas, outro dia passei o link pros colegas médicos daqui, porque eu vejo que muitos às vezes não sabem dos cursos e não fazem por isso. Então, eu passei pros colegas e falei: "Ó gente, acessa, os cursos são muito bons, adequados com as normas do Ministério, com as normas técnicas, com a melhor de... divulgação, os cursos são sempre reciclados, em termos do assunto, então, sempre o assunto novo, né? De acordo com a literatura." Então, eu acho que a é forma da gente se capacitar (T12).

Outros discursos revelam a dimensão do acesso aos saberes profissionais ao representar a EP na dimensão "teórica" que conforma o pensamento hegemônico sobre os processos educativos. Assim, ficar na prática pela prática tem menos valor no discurso, sendo necessário "teorizar" para qualificar a prática, continuamente (sempre melhorando).

(12) Olha, eu acho que educação permanente, quando eu penso em educação permanente eu penso em você alinhar a teoria à prática, né? Eu acho que a teoria é um condutor pra você poder trabalhar, né? Acho importante você estar em contato com a teoria. Então, eu acho que educação permanente é você, de tempos em tempos, ter esse contato, essa reflexão, né? Estar acrescentando também pra sua prática, né? Pra gente não ficar também só na prática pela prática, pra gente ter uma reflexão, um momento de trabalhar a questão teórica. [...] A gente comentando aqui que no início tinha muita coisa, muito curso e não era chamado de educação permanente. De repente, eles mudaram o nome pra educação permanente e aí a gente não poderia fazer mais que dois por ano. Então, assim, até isso eles diminuíram. É, restringiram (T25).

Importante destacar que os participantes sinalizam que a oferta da EP é de responsabilidade institucional, marcando seus discursos por avaliações de que essa oferta tem sido restrita ou não tem acontecido como se esperaria, sequencial, atribuindo a isso o desestímulo no cotidiano do trabalho.

(13) [...] eu acho que você falar de educação permanente tinha que ser assim, sequencial. Saiu um curso, entra outro. Não deixa esse espaço entre um e outro não, porque isso até desestimula a gente. Então, se tivesse um rodízio, se fosse contínuo mesmo, permanente... (T17).

Num tom de julgamento da instituição, os profissionais afirmam que não têm horário protegido na agenda para a EP, bem como explicam a quebra da oferta de dispositivos como a teleconferência e os cursos, temporizando a comparação do antes e do depois, referindo-se à gestão atual. A avaliação valorativa negativa ao utilizar a expressão verdadeiramente de EP, excerto 15, coloca em xeque se tal processo tem acontecido no cotidiano da UBS.

(14) [...] estando em uma instituição como PBH, através de programa da instituição que visa educação permanente, como cursos, atualizações, simpósios, congressos [...] sendo que nós não temos um horário protegido mais nas nossas agendas com educação permanente [faz gestos que informam negatividade e uma expressão facial de crítica], isso é uma falha na gestão atual do PBH porque na gestão anterior nós tínhamos garantido os núcleos, os NEPS, núcleos de educação permanente... a gente tinha os núcleos de estudo, a gente tinha encontros quinzenais, mensais pra gente... tinha um horário protegido na agenda para a educação permanente e hoje em dia a gente não tem (T13).

(15) Bom, a gente sabe que existe autodidatismo. Existe até mesmo depois que a pessoa já formou, graduou, ela pode assim, autodidaticamente ir avançando. Todavia, se ela tivesse vinculada a um programa verdadeiramente de educação permanente, eu acredito que os passos seriam mais rápidos e mais na direção necessária vinculado às necessidades do trabalho. Acho que a educação permanente, talvez assim, ela peque porque, muitas vezes, ela fica fora do horário de trabalho, né? (T14).

(16) [...] Agora a questão da educação permanente mesmo, de cursos, disso daí... [faz gesto com as mãos, indicando que a EP está fora dela. Olha-me com expressão facial de quem quisesse aprovação. Eu faço gesto com ombro, não sei]... ela continua: tá! A prefeitura tá nos devendo. Tem muito tempo que a gente não tem algum curso, sabe? O ano passado nós não tivemos mais teleconferência, que antes a gente tinha todo mês, discutia-se um tema. E a gente como profissional, também, como que você faz? A prefeitura faz oferta limitada a um determinado tipo de procedimento, cê acaba também já meio desestimulada pra fazer... eu já fiz muitos cursos na minha vida. Tenho não sei quantas horas de curso pós faculdade. Agora tem muito tempo que eu não faço (T09).

Os participantes revelaram, ainda, que a oferta é fragmentada por procedimentos ou por categorias profissionais (excerto 17, 18 e 19), requerendo uma análise da necessidade de se resguardar o caráter multiprofissional e interdisciplinar da EP. Acrescenta-se que imiscuem o aprendizado na prática cotidiana do trabalho.

(17) [...] assim a gente tem uns cursos que a prefeitura disponibiliza, né? Então, eu nesse período todo que eu tô aqui, eu fiz um curso, que foi de atualização antirrábica. Então, assim, eu acho que pelo menos para parte médica, né? Eu sei que teve várias outras propostas de sala de vacina, sala de curativo, acolhimento, várias outras partes, mas pelo menos dos médicos participando eu achei que foram poucas, né? Pro tanto de demanda que a gente tem e o tanto de atualização mesmo que acontece... mudança de protocolo, de tudo assim, então acho que é pouco ainda para o que acontece. Acaba que a gente aprende na prática vai procurando saber também. Quando dá alguma coisa errada, eles mandam de volta e aí a gente vai saber o que que está acontecendo de diferente (T15).

(18) [...] eu só acho que tem que acrescentar, sabe? Eu acho que educação permanente... o SUS poderia fazer até mais, trabalhar mais nisso com vários profissionais. Eu vejo que tem pra algumas categorias, não tem pras outras... eu acho que isso é uma forma de estimular o profissional a estar sempre engajado no serviço. Eu acho que o conhecimento nunca ocupa espaço, então precisa sempre ter... (T24).

(19) [...] Isso é uma das coisas que a gente tem colocado [...] que a gente sente muita falta, porque todos os profissionais, em algum momento, eles são chamados pra alguma capacitação (T11).

No excerto 19 é possível identificar, por meio da metáfora conhecimento nunca ocupa espaço, uma crença de que o saber é infinito, referindo-se à oferta de cursos pela instituição como forma de estimular o profissional, colocando, também, em evidência, uma condição do engajamento do profissional no serviço.

O engajamento refere-se à noção da EP no cotidiano do serviço de saúde. Interdiscursivamente os profissionais afirmam que o trabalho é o objeto central da EP, remetendo às práticas discursivas produzidas no campo da saúde na última década. O interdiscurso da OPAS relaciona-se ao sentido de a EP possibilitar transformações das práticas profissionais no cotidiano dos serviços de saúde, a partir da realidade do trabalho, significando uma ideologia da práxis cotidiana.

Assim, a EP não é curso, não é teleconferência, não é palestra, mas é algo que acontece no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho. Por outro lado, ao valorizarem cursos e treinamentos os participantes atribuem à instituição a responsabilidade pela oferta institucionalizada da educação permanente num interdiscurso do Ministério da Saúde e da Prefeitura.

(20) Acho que o espírito da educação permanente é que isso acontecesse durante o horário de trabalho. E ficasse vinculado às necessidades do trabalho. Às vezes a gente encontra pessoas que sai fazendo cursos aí, né? Sei lá, né? Ele cisma de fazer um curso, uma coisa estratosférica aí e vai e faz. Isso não é educação permanente. Educação permanente é para o trabalho certo! Para as necessidades do trabalho. [...] Então, mostrando, assim, as lacunas da educação permanente. Educação permanente, pra mim, assim, não é teleconsultoria, certo? Não é palestra, certo? Isso tudo eu acho muito interessante. Uma biblioteca, por exemplo, eu costumo assistir, gosto muito das teleconsultorias. Assisto em casa, aqui não tem como, né? Mas isso não é educação permanente. A educação permanente é aquela que permitisse, conforme a demanda, conforme a necessidade, certo, naquele instante eu ter condição de acessar e ter uma resposta, para uma atitude melhor (T14).

Outros profissionais revelam pragmatismo e espontaneidade, associando a EP ao que se aprende para colocar em prática no trabalho.

(21) Eu entendo educação permanente... os cursos que a gente faz nesse período de trabalho, focado no trabalho... que a gente possa trazer pros pacientes, pra unidade... porque permanente é conhecimento, eu acredito, né? Não se é isso que vocês fazem... que é certo. Eu entendo como se fosse isso, tanto pela Prefeitura dando os cursos, quanto por a gente mesmo. Então eu entendo isso como educação permanente, dentro do serviço. Talvez seja mais vinculado ao serviço, serviço próprio, seja mais direcionado... (T24).

(22) É muita coisa nova, muito aprendizado, então tá sempre surgindo coisa nova. Então, eu creio que... a gente ainda tá com aquele receio de, desses cursos que a gente tá fazendo que tá falando que a gente vai ter que aprender a aferir pressão, umas coisas que a gente acha que é mais de técnico de enfermagem, né? Mas eu me vejo [...] tudo como aprendizado. O que vier pra mim que for pra aprender, pra mim é lucro (T07).

(23) Olha, eu... o que eu vejo assim... é que a educação permanente, assim, precisa acontecer melhor, sabe? Que, às vezes, a gente é colocado no setor e não tem aquele acompanhamento assim, sabe? Às vezes, põe na vacina que é um setor muito complexo, que a gente precisa de informação, precisa de saber muito detalhe e quando você vai ver você já tá fazendo várias coisas há muito tempo e que já tem muito tempo que aquilo já caducou... que não é assim mais que tá fazendo, então é... [...] na hora que a gente tem qualquer dúvida, qualquer coisa, às vezes, a gente tem que ligar na imunização, no caso da vacina, né? Então eu acho assim, que a gente é pouco... Como que eu posso falar? Pouco assistido, sabe? (T22).

(24) Então eu creio que a educação permanente é uma coisa muito importante pra gente, principalmente na nossa área na questão da biossegurança, né? Porque, às vezes, os conceitos mudam e as normas mudam e nem sempre a gente tem acesso a essa informação. Antigamente, na prefeitura, todo final de ano a gente tinha as oficinas, né? [...]. A gente fica muito preso no que a gente aprendeu há muitos anos atrás. Então eu acho que seria importante essa questão da gente estar sempre fazendo curso de aperfeiçoamento, né? É muito importante, né? Principalmente nessa área da biossegurança (T22).

A metáfora pra mim é lucro, excerto 22, refere-se ao novo aprendizado que se acumula. Do mesmo modo, em 23 o participante reporta-se à necessidade de atualização contínua para que o que se sabe não fique caduco e seja útil aos dias atuais. O novo parece ser o combustível da EP no cotidiano, que proporciona oportunidade para o aprendizado, estabelecendo um movimento de continuidade.

(25) Eu acho que a gente sempre tem que estar aberto pras novas opções, pra novas experiências, expectativas... Eu vivo muito nas expectativas... e sempre quero uma nova. E as experiências também... sempre quero uma nova... então a gente tem que estar pronto pra isso. E o que for, que tem a ver com coisa de hoje, atual... o que vier amanhã a gente tem sempre que buscar o melhor... Permanência não pode existir... acho que permanência é permanecer hoje... amanhã... é pensar no futuro. Isso que eu acho que é educação permanente... a gente sempre estar se educando... (T03).

(26) [...] Deixa eu pensar... Acho que a gente tá em constante aprendizado. A gente, todo dia surge coisa nova. A gente... nós não temos uma rotina assim não... a gente tem sempre alguma coisa nova que a gente precisa disso. E, muitas vezes, a gente não estuda só com quem dando... aula, a prefeitura fornece os protocolos pra gente. Constantemente tem que ir no protocolo, dar uma estudada, isso pra mim é uma educação que constantemente se faz. Mudança de protocolo, tem que verificar. Então, eu acho que tem várias atividades que é constante (T10).

Em 27 e 28, os participantes mencionam a relação indissociável que se estabelece entre trabalho e aprendizado: enquanto se trabalha, se aprende.

(27) Bom, educação permanente significa que, como o próprio nome diz, durante todo o tempo em que você está trabalhando você também está aprendendo seja através, uma iniciativa individual do profissional, de se atualizar, de estudar um caso que não conseguiu resolver, se atualizar através de diversos programas de atualização que existe, de protocolos novos, [...] educação permanente seria isso, você está trabalhando e também está aprendendo (T13).

(28) [...] É um sistema de aprendizado contínuo que a gente tem, em relação ao nosso trabalho. E (?), em cima das nossas atividades e de contínuo [...] É que a gente sempre tá, tipo, a gente sempre tá aprendendo (T01).

Foi possível identificar a relação temporal de continuidade que se constrói sobre a EP, como aquela que se processa continuamente, ao longo da vida, a ponto de naturalizá-lo no cotidiano do trabalho, tornando as pessoas melhores.

(29) Obviamente, então, que a gente vai pensar, se a gente vive no ambiente de educação permanente, né? A gente encontra um profissional no início de sua carreira e depois a gente encontra com ele, sei lá quanto tempo depois, necessariamente esse profissional tem que estar muito melhor. Certo? [...] pela própria natureza humana, se todos nós sempre queremos melhorar, esse é o movimento natural de tudo, certo? [...] (T14).

(30) [...] Bom, eu acho que educação permanente é a continuidade dum processo realmente da capacitação e mudança dos hábitos das pessoas diante daquele tema abordado. É... e eu acho assim, fundamental, de fundamental importância que essa educação permanente seja de fato permanente, para que a gente não tenha prejuízo no serviço, nos processos. Principalmente, de assistência, organização de fluxo, num é, enfim... nos diversos temas que a gente atende e... tem as possibilidades de abordagem (T11).

Entrar em contato com o novo é o que proporciona experiências e maturidade para a ação no cotidiano, atribuindo-se à EP uma dimensão que extrapola a educação profissional com finalidade de formar aptidões para a vida produtiva e social.

DISCUSSÃO

Os achados indicam que os discursos sobre EP transitam entre a representação de reciclagem, atualização de conhecimentos, desacomodação e transformação da prática e aprendizado para/ao longo da vida. Para revelar essas representações, o discurso é marcado pelas categorias de vocabulário, interdiscurso, temporalidade, ideologia e modalidade.

A reciclagem compõe o universo vocabular dos profissionais de saúde ao relatarem a EP. Entende que reciclar, no seu sentido utilizado na área de reprocessamento de materiais, diz respeito reutilização de parte útil dos dejetos e reintrodução no ciclo de produção, podendo ser considerado também como o ato de se reprocessar algo quando é necessário aprimorar suas propriedades ou melhorar o seu rendimento.99 Araujo GM, Reisdorfer N, Silva LAA, Soder RM, Santos AM. Segurança do usuário: cuidados com o processamento de artigos críticos na atenção básica. Rev Enferm UFPE On Line [Internet]. 2017 Oct; [cited 2018 Aug 6]; 11(Supl. 10):4096-102. Available from: http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/bde-33200
http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resou...
Dessa forma, reciclagem para profissionais de saúde, remete à formação complementar dada a um profissional para permitir que ele se adapte às inovações tecnológicas e científicos.

Ora, um produto é algo que resulta de determinado processo de trabalho, como aquilo que pode ser medido de acordo com certas especificações e referenciais de qualidade. Enunciado pelos profissionais de saúde, a reciclagem volta-se para o entendimento de que o profissional precisa ser recuperado no sentido de resgatar sua funcionalidade e tornar-se útil na cadeia produtiva da saúde.

A adoção do termo reciclagem, no campo da educação profissional em saúde, remonta a concepções vigentes na década de 1950 e 1960 frente ao modelo desenvolvimentista no Brasil, que adotaram também, no final da década de 1950, o discurso internacional, inspiradas na teoria do capital humano de Theodore W. Schultz. Assim, numa visão pragmática, os profissionais eram recursos que deveriam ser reprocessados, recuperados ou aprimorados conforme a necessidade tecnicista.1010 Mendonça AWPC, Xavier LN, Breglia VLA, Chaves MW, Oliveira MTC, Lima CM, et al. Pragmatismo e desenvolvimentismo no pensamento educacional brasileiro dos anos de 1950/1960. Rev Bras Educ [Internet]. 2006 Jan/Abr; [cited 2018 Aug 6]; 11(31):96-199. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a08v11n31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a0...

Essa forma de pensar orienta o planejamento econômico proposto pela estratégia da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que passa a preconizar o desenvolvimento integrado como instrumento de superação do subdesenvolvimento, influenciando a política educacional brasileira, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1960. Consequentemente, no campo profissional passa a imperar a concepção tecnicista, refletindo em cursos de reciclagem e atualização alinhados ao ideário hegemônico que reforça a saúde como um setor produtivo.1010 Mendonça AWPC, Xavier LN, Breglia VLA, Chaves MW, Oliveira MTC, Lima CM, et al. Pragmatismo e desenvolvimentismo no pensamento educacional brasileiro dos anos de 1950/1960. Rev Bras Educ [Internet]. 2006 Jan/Abr; [cited 2018 Aug 6]; 11(31):96-199. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a08v11n31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a0...

Acrescenta-se que, no Brasil, a década de 1960 foi marcada pela ditadura militar, na repressão às práticas democráticas. Nesse contexto, a educação profissional era voltada para a adequação ao processo produtivo, cujos investimentos visavam à política desenvolvimentista com forte viés economicista. Nesse cenário, era preciso produzir profissionais competitivos e facilmente adaptáveis à máquina produtiva. Para tanto, a abordagem tecnicista era a orientação dos modelos de ensino, numa visão pragmática e instrumentalista da realidade.1010 Mendonça AWPC, Xavier LN, Breglia VLA, Chaves MW, Oliveira MTC, Lima CM, et al. Pragmatismo e desenvolvimentismo no pensamento educacional brasileiro dos anos de 1950/1960. Rev Bras Educ [Internet]. 2006 Jan/Abr; [cited 2018 Aug 6]; 11(31):96-199. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a08v11n31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a0...

Nas duas décadas seguintes, um novo movimento se contrapôs à concepção de adaptação da educação, especialmente na década de 1980, num processo de discussão e construção de um novo sentido, que posiciona a educação dos profissionais da saúde frente ao trabalho. Essa concepção é reforçada pela OPAS na América Latina, como a educação com foco no trabalho em saúde. Nessa vertente, a educação dos profissionais visava ao aprendizado no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho.1010 Mendonça AWPC, Xavier LN, Breglia VLA, Chaves MW, Oliveira MTC, Lima CM, et al. Pragmatismo e desenvolvimentismo no pensamento educacional brasileiro dos anos de 1950/1960. Rev Bras Educ [Internet]. 2006 Jan/Abr; [cited 2018 Aug 6]; 11(31):96-199. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a08v11n31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n31/a0...

A partir de então, a influência da OPAS começa a ser explorada numa perspectiva de instrumentalização para o trabalho na preparação trabalhadores da saúde para a área de saúde. A exemplo, o Ministério da Saúde adotou esse termo ao apresentar, em 1996, na X Conferência Nacional de Saúde (CNS), um plano de ordenamento da capacitação, formação, educação continuada e reciclagem dos recursos humanos em saúde. Nessa época, a educação permanente voltava-se para a capacitação dos profissionais como forma de atualização técnica com foco no trabalho.1111 Marques CMS, Egry EY. The competencies of health professionals and the ministerial policies. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011; [cited 2018 Aug 20]; 45(1):187-93. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/26.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/26...

No atual âmbito da saúde, é preciso desenvolver competências para atender à demanda de incorporação de tecnologias de diferentes naturezas. Entre essas tecnologias, os achados indicam os protocolos, novos procedimentos e saberes, que chegam de forma descendente aos serviços. Essa noção está presente desde as normalizações federativas que influenciam o campo. Em consequência, é preciso atualizar e ajustar para não se tornar obsoleto. Dessa forma, a EP é apresentada nos discursos por meio dos termos reciclagem, atualização, treinamento, que referenciam a preparação dos profissionais frente às inovações tecnológicas nos serviços de saúde.

Atualizar-se é a adequação ao tempo presente e à modernização, passar da potência ao ato ou da virtualidade à realidade. Aristóteles afirma que a potência e o ato se definem pelas suas relações mútuas, sendo a potência uma capacidade e o ato o complemento, aquilo que a realiza.11 Figueiredo EBL, Silva APA, Abrahão AL, Cordeiro BC, Fonseca IA, Gouvêa MV. Efeito pororoca na educação permanente em saúde: sobre a interação pesquisa-trabalho. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018; [cited 2018 Aug 23]; 71(Suppl. 4):1768-73. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001768&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
Nesse sentido, infere-se que a atualização como modo de operar a EP representa a possibilidade de colocar em ato a capacidade inerente aos profissionais. Assim, atualiza-se para que eles possam realizar o que se espera no processo de trabalho.

Foucault considera que atualizar é enxergar, em dado momento, o lugar onde estamos, buscando nas repetições e diferenças a relação de continuidade ou ruptura. É diagnosticar o presente para enxergar nele o lugar onde estamos e estabelecer o que se constitui, no presente, em suas repetições e diferenças, presente-repetição, presente-diferenças.11 Figueiredo EBL, Silva APA, Abrahão AL, Cordeiro BC, Fonseca IA, Gouvêa MV. Efeito pororoca na educação permanente em saúde: sobre a interação pesquisa-trabalho. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018; [cited 2018 Aug 23]; 71(Suppl. 4):1768-73. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001768&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

No sentido de atualização, nos excertos, pode-se dizer que os profissionais enxergam a atualização por meio de cursos e treinamentos como forma de romper com as repetições de ações que acreditam ser o certo, reconhecendo diferenças entre o que se estabelece nos cursos e treinamentos atuais e entre o que fazem e o conhecimento que se entende como a verdade atual. Ou seja, encontrar no presente o que é e o que não se é mais ou encontrar no presente o que são e o que não são mais. No entanto, essa verdade atual, observada pela cronologia, pode funcionar como uma contingência do presente, desestruturando-o como processo histórico.

A atualização deve ser, então, aplicável no confronto entre o presente (dificuldades e problemas que os profissionais percebem em seu cotidiano) e o vir a ser. No entanto, o cotidiano na UBS apresenta demanda hierarquizada e heterogeneizada por tipos, significados e importâncias de problemas e necessidades, que nem sempre são demandadas aos formadores, para orientar o processo de EP. Muitas vezes, a atualização vem dos demais níveis hierárquicos e chegam até os profissionais sem problematização.

Em referência à hierarquização, essa é parte orgânica do cotidiano, no qual suas prioridades são estabelecidas de acordo com as necessidades de cada um. Por isso a vida cotidiana é também heterogênea.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
No contexto da unidade básica analisada, os profissionais vivenciam dilemas no que diz respeito às necessidades subjetivadas por eles e aquelas demandadas pelos níveis gerenciais superiores. Villa afirma que a discussão da organização da atenção primária à saúde tem sido feita a partir da noção que os gestores têm do trabalho, sem que se consiga vislumbrar as dificuldades e a racionalidade que regem a prática dos demais trabalhadores na realidade cotidiana.1212 Villa EA, Aranha AVS, Silva LLT, Flôr CR. Power relations in the work of Family Health Strategy. Saúde Debate [Internet]. 2015 Oct/Dec; [cited 2018 May 1]; 39(107):1044-52. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v39n107/0103-1104-sdeb-39-107-01044.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v39n107/01...

Nesse sentido, os achados demonstram a insatisfação dos profissionais, que indicam que os movimentos de EP priorizam o aprendizado para a técnica, demandado pela gestão superior, deixando a desejar os processos reflexivos que associam teoria e prática, demanda da gestão superior e do coletivo de trabalhadores. Dessa forma, os movimentos institucionais de EP, ainda que sejam denominados de atualização, pouco contribuem para interrogar o presente, no sentido de sua repetição. Assim, eles parecem não se tratar de atualização, mas de repetições sob novas maneiras de atos e ações já existentes. Nessa direção, os movimentos institucionais de EP contribuem para a dimensão técnica, prática da ação no cotidiano com a repetição que lhe é peculiar, gerando automatismo e espontaneidade.

O automatismo é característica do economicismo, com repetição de atitudes socialmente aceitas. Nesse processo, modulam-se as ações que permitem que sejamos mais rápidos e breves no decorrer da vida cotidiana, quando o tempo e o esforço ficam aquém do necessário e esperado, levando ao uso prático das coisas. A espontaneidade diz respeito ao não pensado ou planejado, com atitudes em decorrência daquele momento específico, sem considerar as consequências futuras, valendo o aqui e o agora.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
Os achados permitem a compreensão de que alguma estratégia de EP contribui para gerar automatismo e espontaneidade, enquanto outras tiram da zona de conforto, desacomodam. Essa metáfora, sair da zona de conforto, quer dizer a desacomodação da posição em que os sujeitos se encontram, buscando a transformação no cotidiano.

Acomodar é se sentir confortável em determinada situação. Logo, pressupõe-se que desacomodar é tornar incômodo, tirar do lugar que lhe é confortável. O agir cotidiano tende a um processo de repetição que, uma vez apreendido e aprendido, torna-se confortável. As repetições são parte do cotidiano, como produto de assimilação das relações sociais, que contribuem para a cotidianidade, cujo aprendizado se dá sempre em grupo.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
Nessa direção, a desacomodação contribui para o não cotidiano, a situação em que os homens lançam mão das suas subjetividades, pensando além de si, e incorporam o coletivo como foco de reflexão e ação.

Nesse processo, as situações novas confrontam o homem particular, que busca na sua subjetividade os elementos da genericidade, pensando além de si, o que lhe proporciona sair do cotidiano e retornar a ele modificando esse mesmo cotidiano. Nesse movimento, cria-se o desenvolvimento que vai além de si, pois que envolve o coletivo ao qual os sujeitos pertencem.1313 Veroneze RT. Agnes Heller: daily life and individuality - an experience in the classroom. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2012 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 22]; 12(1):162-72. Available from: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/download/14217/9626
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.p...

As situações novas fazem com que o sujeito transite por espaços e experiências diversas, podendo, então, ser ativado para a ampliação do olhar e para a desacomodação. O sujeito ao ser desacomodado, ou seja, ficar desconfortável no lugar que lhe é devido, a partir da compreensão de que a realidade é complexa e mutável, dá oportunidade para o crescimento próprio e do seu meio.

No entanto, deve-se estar atento para que, diante dos avanços tecnológicos, não se tenda ao pragmatismo e espontaneidade observados em alguns achados, quando os profissionais associam a EP ao que se aprende para colocar em prática no trabalho. Assim, correm o risco de agirem de forma imediatista, sem problematizar e relacionar o conhecimento à realidade que o rodeia.

A ciência, ao ser transformada em tecnologia para a produção, transforma-se no pragmatismo presente na vida cotidiana, em repostas a funcionamentos práticos, fazem parte e dão mobilidade de ação na rotina do dia a dia, caracterizando a vida cotidiana pelo imediatismo e espontaneidade, num sistema de mediações que se desdobram de acordo com as características dadas no social, econômico e cultural.1313 Veroneze RT. Agnes Heller: daily life and individuality - an experience in the classroom. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2012 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 22]; 12(1):162-72. Available from: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/download/14217/9626
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.p...

Esse pragmatismo e espontaneidade acabam por limitar o humano-particular, que por vezes pode transitar entre ele e o humano genérico, ou seja, objetivações em si e para si, do pensamento de preservação no cotidiano ao de transformação do mesmo. Mas, para isso, além do trabalho como mediador, outros mediadores são necessários para o despertar da criatividade e processos de mudança.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
Nesse sentido, a educação permanente pode ser considerada como mediadora de mudanças, possibilitando crescimento do ser humano para lidar com o mundo, reinterpretando a realidade, num movimento constante em ciclos permanentes.44 Campos KFC, Sena RR, Silva KL. Permanent professional education in healthcare services. Esc Anna Nery [Internet]. 2017; [cited 2018 May 1]; 4(21):e20160317. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_1414-8145-ean-2177-9465-EAN-2016-0317.pdf. DOI: 10.1590/2177-9465-EAN-2016-0317
http://www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_14...

Todo ser humano precisa sobreviver no cotidiano e, para isso, apropria-se dos usos e costumes, mas nas experiências que a vida lhe proporciona, muitas vezes, precisa buscar fora do mundo particular respostas que não lhe são dadas.66 Mafra JF. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educ Ling [Internet]. 2010 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 13(21):226-44. Available from: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/2019
https://www.metodista.br/revistas/revist...
Logo, ao entrar em contato com o novo, este vai lhe proporcionar novas experiências e maturidade e, ao retornar ao seu cotidiano, traz consigo novas formas de enxergá-lo, ressignificando-o. Esse movimento conduz ao crescimento que se dá por toda a vida, na medida em que se busca aprender fora da particularidade de sobrevivência.

Os achados mostram também que é valorizado o alinhamento da teoria à prática no cotidiano do serviço na UBS, aparecendo como uma vertente da EP que permite o desenvolvimento menos objetivante e mais motivador para uma práxis transformadora, ao se questionar a prática pela prática, que não proporciona desenvolvimento no cotidiano do serviço e do trabalho em saúde.

A teoria é uma forma não cotidiana de pensamento que contribui para o desenvolvimento humano, mas essa teoria pode permanecer imersa na cotidianidade, não representando desenvolvimento para o coletivo.1313 Veroneze RT. Agnes Heller: daily life and individuality - an experience in the classroom. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2012 Jan/Jun; [cited 2018 Aug 22]; 12(1):162-72. Available from: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/download/14217/9626
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.p...
Nesse processo, o homem pode ser consumido na fragmentação em seus papéis sociais e viver de forma estereotipada, com assimilação das normas dominantes, na particularidade e de forma conformista, atribuindo a outro a sua responsabilidade.

A fragmentação da oferta de cursos por categorias ou temáticas pode constituir e fortalecer espaços de hegemonia disciplinar, interferindo nas relações microssociais, entre as profissões, na produção do trabalho e atenção à saúde. Assim, essa maneira de organizar a EP é contraditória aos pressupostos da multiprofissionalidade e interdisciplinaridade. Nesse sentido, ao se pensar no cotidiano e nas necessidades de um campo interdisciplinar, os discursos sinalizam avaliações negativas ao modo compartimentalizado, indicando a valorização sobre o aprendizado a partir dos coletivos, em processos contínuos.

A construção de espaços solidários proporciona consciência do inacabamento e das incertezas possibilitando a ideia de que a educação permanente deve ser um processo contínuo que emerge como um espaço de reinvenção dos sujeitos.11 Figueiredo EBL, Silva APA, Abrahão AL, Cordeiro BC, Fonseca IA, Gouvêa MV. Efeito pororoca na educação permanente em saúde: sobre a interação pesquisa-trabalho. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018; [cited 2018 Aug 23]; 71(Suppl. 4):1768-73. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001768&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

O aprendizado contínuo ou ao longo da vida carrega a visão de que o homem é um ser inacabado e para sobreviver num mundo em evolução precisa aprender continuamente. Nesse processo, a educação institucionalizada não é o único espaço de aprendizado, mas todos os momentos da vida em sociedade, mas todos os espaços onde há o compartilhamento de saberes no cotidiano.1414 Costa MAR, Souza VS, Teston EF, Spigolon DN, Matsuda LM. Educação permanente em saúde: a concepção freireana como subsídio à gestão do cuidado. Rev Fund Care Online [Internet] 2018 Apr/Jun; [cited 2018 Aug 20]; 10(2):558-64. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/6368
http://www.seer.unirio.br/index.php/cuid...

Nesse sentido, considera-se que a EP no setor saúde pode provocar processos de mudança, nos diversos espaços, numa prática social que deve incluir trabalhadores e usuários.1515 Silva KL, Matos JAV, França BD. The construction of continuing education in the process of health work in the state of Minas Gerais, Brazil. Esc Anna Nery [Internet]. 2017; [cited 2018 Aug 6]; 21(4):e20170060. Available from: www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_1414-8145-ean-2177-9465-EAN-2017-0060.pdf
www.scielo.br/pdf/ean/v21n4/pt_1414-8145...
Assim, o serviço de saúde na UBS configura-se como um espaço potencial para a educação permanente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou analisar os discursos sobre educação permanente no cotidiano de uma UBS. Identificou-se que há várias noções de EP, influenciadas por formulações em diferentes contextos, dos quais emergem vocábulos com significados culturais diversos, que informam a coletivização do discurso.

Nos achados acerca da prática de EP como reciclagem, atualização e desacomodação e sua correlação com as repercussões no modelo assistencial, ficou evidenciado que a desacomodação proporciona ação e reflexão, portanto, levando a mudanças positivas na atenção aos usuários. No entanto, reciclar e atualizar constituem uma necessidade de readequação do profissional em relação às normatizações, protocolos e direcionamentos de níveis hierárquicos da gestão. Dessa forma, proporciona adequação às tecnologias, sem necessariamente provocar mudanças no modelo de atenção.

Ao valorizarem cursos e treinamentos, os participantes atribuem à instituição a responsabilidade pela oferta e institucionalização da educação permanente num interdiscurso do Ministério da Saúde e Prefeitura. No entanto, reconhecem e valorizam a EP no cotidiano como prática social capaz de proporcionar transformações nos processos de trabalho e na atenção aos usuários. Nessa direção, como implicações para a prática, recomenda-se ampliar a discussão sobre a potência do cotidiano com os profissionais, no sentido de ativar o reconhecimento e valorização das estratégias de EP como instrumento de mudança nas práticas sociais.

As limitações deste estudo estão relacionadas ao delineamento de pesquisa na estratégia que adotou um único serviço como cenário o que não permite generalizações dos seus achados, apesar da sua intensidade e exaustividade. Há de considerar-se também a necessidade de realizar novas investigações que permitam entender a ocorrência da educação permanente e suas transformações ao longo do tempo, bem como os discursos institucionais externos e sua relação no cotidiano da UBS.

  • FINANCIAMENTO
    Projeto Educação permanente em saúde e os modos de pensar e fazer gestão, atenção, formação e participação no e para o SUS - Processo APQ 03466-14, financiado pela FAPEMIG.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2018
  • Aceito
    25 Ago 2018
Universidade Federal do Rio de Janeiro Rua Afonso Cavalcanti, 275, Cidade Nova, 20211-110 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel: +55 21 3398-0952 e 3398-0941 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: annaneryrevista@gmail.com